17 setembro 2018

Do saudosismo do combate

Sexta-feira almocei com uma tertúlia habitual. Uma vez que somos poucos, temos oportunidade para falarmos todos entre todos. Conversamos de História, de religião, de genealogia, de alguma política internacional, deste ou daquele por quem nos interessamos mais. Pelo meio contamos graças, rimo-nos, cimentamos amizades, aprendemos, descobrimos diferenças e semelhanças, identificamos coincidências no que para nós é fundamental.

Foi no decurso deste almoço que se falou de Timor e eu mencionei o tenente-coronel Maggiolo Gouveia, cuja descendência frequentava a piscina do Regimento de Infantaria de Abrantes, onde cumpri serviço militar, em 1981. Este militar faz parte de um certo imaginário político que recua a 1976, uma altura em que eu eu outros jovens, então com 20 anos, nos entusiasmávamos com a política e com uma certa ideia de Deus, Pátria, Rei, trilogia que era filha das nossas convicções inflamadas. O relato que nos chegou na altura talvez tenha sido o que reproduzo abaixo, que consta de uma carta do Bispo de Dili à mulher de Maggiolo Gouveia (10 de Março de 1976) e cujo excerto retirei daqui:  

"(...) Chegados aqui, e percorridos uns metros de estrada, soou a voz de «alto» e o grupo parou e viu-se próximo de uma grande vala, previamente aberta ao lado da estrada. É-lhes, então dito que todos vão, ali ser fuzilados. Há um momento de consternação e de estremecimento colectivo. As milícias põem a arma à cara: e é então, que o tenente-coronel Maggiolo levanta a voz e diz: Senhores, deixem-nos rezar. E todo o grupo, de joelhos em terra, reza o terço a N.Senhora, dirigido pelo tenente-coronel Maggiolo. Terminado este e estando todos de joelhos, encoraja e anima os seus companheiros «condenados à morte» e termina dizendo: Irmãos, breve vamos comparecer na presença do nosso Deus e Pai: façamos o nosso acto de contrição, o nosso acto de amor. E, em silêncio entrecortado de lágrimas, os corações daqueles homens sobem a Deus para pedir... lembrar... e dizer... aquilo de que, naquela hora derradeira, Deus é o Único testemunha. Depois, o tenente-coronel põe-se de pé, sendo seguido neste gesto pelos seus companheiros, e dirige-se aos soldados-algozes nestes termos: irmãos, nós estamos já preparados para comparecer no Tribunal de Deus, lá vos esperamos também a vós. O meu único crime foi o de não renegar a minha fé e o de amar Timor. Morro por Timor. Morro pela minha Pátria e pela minha fé católica. Podeis disparar."  

Interessa-me pouco, a esta distância, o percurso político do militar português em serviço em Timor, nem me compete fazer qualquer julgamento sobre as suas atitudes no momento. O tempo, aquele tempo, era de defesa daquilo em que acreditávamos e que sentíamos ameaçado. O militar português era um mártir que encontrara forças para rezar antes de ser fuzilado. E era isso que importava - morria-se por Deus e pela Pátria, mesmo que envolto em brumas de romance.

A conversa da tertúlia prossegue e, a este propósito, fala-se então do jornal A Rua, semanário de direita fundado na altura por Manuel Maria Múrias. E fala-se de Rodrigo Emílio, um homem cujo nome me lembrava de ver nas páginas do referido semanário. Os tempos eram de empolgamento, de esperança e luta, de militância e risco. Nada estava garantido - nem o futuro, nem a pátria, nem a liberdade, nem o crucifixo. Eram tempo difíceis, e por isso talvez mais ricos. O tom deste post não é de saudosismo político; talvez seja de saudosismo do combate.

JdB

*** 

Poema de Luto Pesado * por Rodrigo Emílio

(Em memória e louvor do Tenente-Coronel MAGGIOLO DE GOUVEIA e de mais sessenta PORTUGUESES, fuzilados em TIMOR pelos facínoras comunistas da Fretilin)

Para o Pedro Rocha, a quem este poema e respectivo autor tantíssimo devem...

Tu viste, do céu?...
Assististe, Senhor,
à chacina de Ailéu
(algures, em Timor)?!...

Viste a morte cruenta
e sangrenta
— tal como aquela que se dá às rezes... —
que sofreram 50 ou 60
Portugueses?!...

Viste como esses perseguidos
se persignaram, em português,
por môr de Dili
— e à hora da morte, unidos,
ali ajoelharam,
uma última vez
diante de Ti?...

E viste, viste também
(à flor da ilha que lhes foi berço
e lhes foi cova duradoura),
como todos, em côro, rezaram o terço
a Tua Santa Mãe,
Nossa Senhora?!...

Não deixaste sequer de reparar
que, mal a oração final
por ali se pronuncia —
eles, todos, em coral,
desataram a cantar
ao Coração Virginal
de Maria!...
... ... ...

Finalmente,
puseram-se de pé.

E à frente
de tão nobre gente,
há então quem dê
um último e ardente
testemunho de fé.

É o Tenente-Coronel
MAGGIOLO DE GOUVEIA
— que não cura de salvar a pele,
mas a epopeia!

Em nome de todos, disse isto,
Senhor!,
às fardas cruéis
que os iam matar:

«Morremos por CRISTO
e por TIMOR.
Podeis
disparar».

Rodrigo Emílio
In Poemas de Braço ao Alto, págs. 98/99.

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* tirado daqui (o poema e os outros considerandos)

2 comentários:

  1. «A Rua»... Tenho ciosamente guardado o exemplar nº 0 do periódico... Impressionante registo. Não o conhecia... Percebo lindamente o seu "saudosismo do combate"; o político, só para nos orgulharmos de ter sido quem fomos e no que acreditávamos e, se calhar, no que somos e no que acreditamos, embora de uma forma muito mais suave. Os tempos são outros...

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  2. Laurus nobilis:
    Obrigado pela sua visita.
    Foram tempos diferentes, não sei se melhores. Agora é tudo mais certo - já não há o risco da falta de liberdade, de fim da Pátria, de expulsão do crucifixo. Agora os dramas serão os preços das casas e do novo telemóvel, a dificuldade das carreiras, os ordenados de miséria, o tempo certo para ir ao Vietname.
    São tempos diferentes, repito, e os combates são outros, talvez menos formadores de consciência política, talvez mais consentâneos com um certo aburguesamento das vidas.

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