É urgente nutrir a vida (II)
Somos crianças recém-nascidas
Uma das mais belas frases que conheço encontrei-a na Primeira Carta de Pedro. E é esta: “como crianças recém-nascidas, desejai” - 1Pe2,2). Somos, mesmo com dezenas, com centenas de anos em cima, mesmo quendo passamos o meio da vida e todas as outras fronteiras, “crianças recém-nascidas”. E temos muito a aprender com a fragilidade dos recém-nascidos que, no fundo, ainda é a nossa. A fragilidade é parte integrante da vida, e não apenas como uma das suas formas ocasionais e possíveis. Ela deve ser reconhecida como sua estrutura fundante. A fragilidade é uma condição de partida, uma espécie de pacto de origem, se pensarmos no modo como fomos gerados e introduzidos na existência. Mas ela persiste, metamorfoseando-se ao mesmo tempo do que nós, acompanhando-nos. Há que compreendê-la não simplesmente como uma carência, uma incompletude que não nos larga até ao fim, uma dependência das múltiplas relações que nos tecem. A fragilidade permite-nos acolher a secreta e transparente melodia sem a qual não entenderíamos a vida na sua inteireza, permite-nos explorar o desenho delicadíssimo da sua paisagem interior, acariciar os seus fios ténues que, descobrimos depois, são longos e indivisíveis como fios de chuva. Quanta ciência existe naquele poema de Lao Tsé que diz: “quando os homens ingressam na vida são tenros e frágeis; quando morrem são hirtos e duros. Por isso os hirtos e duros são, desde o princípio, mensageiros da morte e os tenros e frágeis são os mais credíveis mensageiros da vida.”
A fragilidade como parábola
A maturidade ajuda-nos a reconhecer a fragilidade como parábola. Há palavras fortes e palavras frágeis. As fortes servem-nos de leme, atiram-nos para diante, esclarecem, ordenam, organizam, confirmam. Precisamos delas, claro. As palavras frágeis, porém, não são o contrário das fortes. São palavras de outra natureza, representam signos de outra gramática. E percebemos que elas são frágeis porque são frágeis certos cursos de água que atravessam os bosques; certas sequências de uma canção que se recitam quase em murmúrio não para apagar mas para intensificar o canto; certas etapas cambaleantes que servem ao bailarino ou ao viajante para um reencontro necessário com o próprio passo; certas hesitações sem as quais não faríamos a experiência da surpresa, do amor ou do espanto. Há emoções fortes e emoções frágeis. As emoções fortes tornam-se marcos da estrada que percorremos. Mas as emoções frágeis não são o seu inverso indiferente, mas o seu complemento. Da alegria que provamos podemos dizer: é uma estação breve. Da esperança podemos pensar: é uma sombra acesa que passa. Da mansidão, da ternura, da inocência, da gentileza, da amizade podemos temer: chegará o outono e também elas se desfarão. Que insensatez, porém. O que vemos todo o tempo é o sol fazer estremecer as folhas que nutre.
Se estamos dispostos a amar a vida
O mais importante não é, por isso, descobrir afinal se a vida é bela ou trágica, se, feitas as contas, ela não passa de uma paixão irrisória ou se a cada momento se revela uma empresa sublime. Certamente está-nos reservada a possibilidade de a tomar em cada um desses modos, só distantes e contraditórios na aparência. A mistura de verdade e sofrimento, de pura alegria e cansaço, de amor e solidão que no seu fundo misterioso a vida é, há de aparecer-nos nas suas diversas faces. Se as soubermos acolher, com a força interior que pudermos, essas representarão para nós o privilégio de outros tantos caminhos. Mas o mais importante nem é isso, aprendemos depois. Importante mesmo é saber, com uma daquelas certezas que brotam inegociáveis do fundo da própria alma, se estamos dispostos a amar a vida como esta se apresenta.
Há um trabalho a fazer
É necessário decidir, portanto, entre o amor ilusório à vida, que nos faz continuamente adiá-la, e o amor real, mesmo que ferido, com que a assumimos. Entre amar a vida hipoteticamente pelo que dela se espera ou amá-la incondicionalmente pelo que ela é, muitas vezes em completa impotência, em pura perda, em irresolúvel carência. Condicionar o júbilo pela vida a uma felicidade sonhada é já renunciar a ela, porque a vida é dececionante (não temamos a palavra). Com aquela profunda lucidez espiritual que por vezes só os homens frívolos atingem, Bernard Shaw dizia que na existência há duas catástrofes: a primeira, quando não vemos os nossos desejos realizarem-se de forma alguma; a segunda, quando se realizam completamente. E com aquela ligeireza que só a grande profundidade permite, Santa Teresa de Ávila garantia que “mais lágrimas são derramadas pelas súplicas atendidas do que pelas não atendidas”. Há um trabalho a fazer para passar do apego narcisista a uma idealização da vida, à hospitalidade da vida como ela nos assoma, sem mentira e sem ilusão, o que requer de nós um amor muito mais rico e difícil. Esse que é, em grande medida, um trabalho de luto, um caminho de depuração, sem renunciar à complexidade da própria existência, mas aceitando que não se pode demonstrá-la inteiramente. A vida é o que permanece, apesar de tudo: a vida embaciada, minúscula, imprecisa e preciosa como nenhuma outra coisa.
A rosa é sem porquê
A sabedoria espiritual de que precisamos é a que nos faz viver a vida mesma, a existência não como trégua, mas como pacto, conhecido e aceite na sua fascinante e dolorosa totalidade. E quando é que chega a hora da felicidade? - perguntamo-nos. Chega nesses momentos de graça em que não esperamos nada. Como ensina o magnífico dito de Angelus Silesius, o místico alemão do século XVII: "A rosa é sem porquê, floresce por florescer/ Não se preocupa consigo, não pretende nada ser vista".
* D. José Tolentino Mendonça
Publicado em 18.09.2018
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