Há duas maldições que me perseguem no caminho para as aulas na faculdade: o trânsito, de ida ou de regresso, e as praxes. Se o trânsito é uma espécie de inevitabilidade decorrente de várias condicionantes - maus transportes públicos, gosto pela independência, necessidade de circulação - as praxes poderiam ter um fim, se não por via do convencimento inteligente, por via de uma decisão administrativa.
Podia proibir-se a praxe como se proíbem os atentados aos bons costumes: não podemos andar nus, não podemos urinar contra uma parede ou atravessar fora das passadeiras. Há outra hipótese, que é considerar a praxe como uma ameaça à saúde pública, como a peste negra ou a varicela: obriga-se à vacina, impede-se a praxe. Por mim até poderia vir tudo no mesmo decreto-lei, que é para as gerações vindouras perceberem que entre a tuberculose, o sarampo e um cavalheiro fardado de estudante aos gritos a diferença é um fio de cabelo.
Dizem-me que a praxe é integradora, uma espécie de rito de passagem. Dizem-me que, por mais que as faculdade queiram criar praxes "solidárias", há uma espécie de maltosa que prefere o formato vigente: gritos, enxovalhos, caras pintadas, simulação de actos sexuais, o diabo a quatro (e algumas vêm relatadas neste artigo do Observador). Um dia destes, saía eu de uma aula intelectualmente reconfortante, talvez a pensar no belo, no sublime, na poesia ou na elevação das almas, quando vejo um grupo passar por mim: meia dúzia de jovens fardados de preto a comandarem duas dúzias, talvez, de jovens também fardados - mas mais porcos. Num ápice recuei a 1980 / 1981, já lá vão quase 40 anos. O que se passou nessa altura? O meu serviço militar obrigatório. Eu explico.
Em Mafra, onde fiz a recruta, não havia praxe, não havia rituais - a integração vinha, também, por via de uma farda que nos igualava a todos. Como recruta fui maltratado: não era só a comida má e o duche frio, eram os gritos permanentes dos instrutores: por vezes vozes de comando, por vezes impropérios, porque as flexões estavam mal feitas, alguém se atrasava ou tinha um botão fora da casa. Gritava-se muito, insultava-se muito, castigava-se muito. De certa forma repeti o modelo quando, em Abrantes, passei a instrutor. Gritei seguramente mais do que devia, insultei mais do que devia - a vida castrense era assim.
Ora, o grupo que passava por mim assemelhava-se a uma espécie de pelotão comandado por um aspirante (duas condições que conheço bem): o que estaria mais próximo de desempenhar o papel de oficial gritava sempre: Caloiros! Mais rápido! Caloiros burros! Atrás deles, rapazes e raparigas aparentemente felizes por, de t-shirt amarrotada e suja, cara pintada e cabelo com farinha, talvez, responderem estupidamente a uma voz de comando estúpida. E lembrei-me que isto era a minha tropa, mas talvez eu não fosse tão estúpido ao ponto de gostar...
Do trânsito não me livro. Mas da praxe talvez. Basta que o ministro da defesa nacional, rapaz sagaz e em maré alta, leve esta gente toda para onde ela seria feliz: um quartel onde, apesar da comida má e banhos frios, há vozes de comando! Em cada praxado há um tarata, em cada praxador um potencial furriel.
JdB
Já se sabe que as conversas são como as cervejas... e os seus textos têm o condão de me recordar coisas que talvez mereçam ser lembradas. Agora foi "as vozes de comando" a atiçar a minha "lembradura"... um amigo, há tempos, zurzia nas qualidades bélicas dos militares dos italianos, pálidas sombras dos talhadores de impérios de outrora, bem caricaturados pelo impagável capitão Bertarelli do "Alô, alô", todo ele plumas, dragonas e medalhas. E não resistiu (e não resisto eu agora) a contar esta graça: a breves instantes de se dar início a uma importante e decisiva batalha, em que as forças italianas deveriam atacar o exército inimigo, o comandante sobe a uma caixa e profere um magnífico discurso de motivação, que termina com um grito épico de "Avanti ragazzi!" Ao contrário do que seria de esperar... nenhum soldado se mexeu. Segundos depois, ouve-se, ao fundo, um emocionado "Guarda che bella voce!"
ResponderEliminarDos urros dos veteranos, infelizmente, nem isso se poderá dizer!