08 novembro 2018

Da ligeireza com que se abordam as coisas importantes

Foi Samuel Taylor Coleridge (Inglaterra, 1772 - 1834) quem cunhou a expressão willing suspension of disbelief que se traduziria em português por suspensão voluntária da descrença embora eu prefira, em benefício do meu argumento, suspensão voluntária da incredulidade. Por outro lado, numa carta aos seus irmãos George e Thomas, John Keats (Inglaterra, 1795 - Itália, 1821) usou a expressão negative capability, que poderíamos traduzir por capacidade negativa.  

Citemos Coleridge (sublinhados meus): In this idea originated the plan of the 'Lyrical Ballads'; in which it was agreed, that my endeavours should be directed to persons and characters supernatural, or at least romantic, yet so as to transfer from our inward nature a human interest and a semblance of truth sufficient to procure for these shadows of imagination that willing suspension of disbelief for the moment, which constitutes poetic faith. 

Citemos Keats: (...) and at once it struck me what quality went to form a man of achievement especially in literature and which Shakespeare possessed so enormously - I mean negative capability, that is, when a man is capable of being in uncertainties, mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact and reason - Coleridge, for instance, would let go by a fine isolated verisimilitude caught from the penetralium of mystery, from being incapable of remaining content with half-knowledge.  

O que diz Coleridge (ou me diz a mim)? Que para alguma leituras - nomeadamente de poesia - é preciso suspendermos a incredulidade. Isto é, deixarmos-nos levar pela improbabilidade, pela inverosimilhança, pelo aparente absurdo do poema e, com isso nos encantarmos. É a suspensão da incredulidade que está por detrás da fé poética. 

Keats diz aparentemente o mesmo, só que entende que Coleridge não o consegue. Para Keats, Shakespeare conseguia-o: ficava com meias verdades, não o incomodava o mistério ou a falta de explicação ou a dúvida. Deixava-se ir. Já Coleridge, diz Keats, sendo muito mais inteligente, não o consegue, não saberia viver numa meia verdade, não conseguiria não perceber tudo, exigiria uma explicação.

A fé (no sentido religioso do termo) é a suspensão voluntária da incredulidade. Nada daquilo fará muito sentido, mas deixamo-nos "incredulizar" para descobrir o encanto. E não vale a pena querer uma explicação para tudo, perceber os meandros da coisa, encontrar uma lógica por trás do amor aos inimigos ou da morte na cruz ou da justiça no regresso do filho pródigo. 

Talvez fossemos todos um pouco mais felizes com esta suspensão voluntária da incredulidade e com uma certa dose de capacidade negativa. Por vezes a explicação é um fosso, como me disseram uma vez. 

JdB    

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