Os avanços extraordinários decorrentes dos Descobrimentos, lançados no século XV por portugueses e espanhóis, trouxeram enorme progresso às ciências naturais e humanas, a partir da descoberta de novas civilizações com outros conhecimentos e novas paisagens, habitadas por fauna e flora desconhecidas.
As novidades oriundas dessas latitudes longínquas impregnaram também a arte e os hábitos dos europeus, surgindo as colecções/gabinetes de curiosidades e maravilhas ou, por exemplo, a moda das pérolas e o gosto pelos jardins povoados de espécies exóticas. Daí foi um instante para os exemplares mais bizarros e fotogénicos começarem a posar para as telas dos pintores, elevados a protagonistas das naturezas-mortas, como que embalsamados pela pintura.
Quando se aguçou a busca pelos seres mais sublimes, a concha do náutilo impôs-se. Marcada pela configuração em espiral logarítmica, começou por ser baptizada de «espiral maravilhosa» (spira mirabilis) pelo seu primeiro estudioso – Jacob Bernoulli (1654-1705). Mais tarde, ganhou o estatuto de «espiral dourada», reveladora do número de ouro ou número perfeito e integrada no capítulo da «geometria sagrada» (sacred geometry). A multiplicação de designações superlativas denuncia o fascínio que tem exercido sobre estudiosos e artistas. A sua curva envolve uma coreografia matemática sofisticada, formada por todas as rectas desse plano curvo, que se organizam num ângulo constante passando por um ponto fixo do mesmo plano:
Exercício exploratório da «Sacred Geometry of the Nautilus». |
Willem Kalf, exímio na execução de naturezas-mortas, assinou uma das representações mais prodigiosas dessa geometria perfeita gravada na carapaça de um molusco sub-aquático do Pacífico:
«Natureza-morta com taça de náutilo», Willem Kalf, 1662, Museu Thyssen-Bornemisza, Madrid. A profusão de peças permitia ao pintor exibir os seus dotes artísticos. |
Outra exibição linda chegou-nos pelo pincel do espanhol frei Juan Baptista Maíno, num óleo barroco à maneira de Caravaggio que foi pioneiro a imortalizar gente comum na tela. O painel dedicado à «Adoração dos Magos» (1612-14) pelo artista da corte de Felipe IV é uma obra-prima de detalhes. Ali brilham panejamentos em texturas sumptuosas, a subtileza de uma luz que anima um hábil jogo de claros-escuros, a mímica poderosa de personagens com um movimento de mãos invulgarmente expressivo e as peças que transportam as dádivas dos Magos. É nessa função que o náutilo contracena, depositário da mirra oferecida pelo Rei de etnia africana. A sua concha resplandece com incrustações do mundo natural implantadas a ouro, confirmando a beleza da interacção entre o melhor da natureza e o ápice do labor humano. Um labor que assim presta homenagem ao esplendor da criação, enquanto os Magos se inclinam perante o Criador:
Pormenor do painel de Maíno com o náutilo à esquerda e o pequeno Salvator Mundi à direita. |
No desfile dos Reis: o mais velho, ajoelhado, leva um cálice dourado. O segundo, com um incensário mais esguio, mas não menos rico, debruça-se sobre o Bebé de caracóis ruivos ainda por domar, que parece brincar como todos os pequeninos tocando em tudo com o indicador; porém, não prescinde do gesto próprio do Salvator Mundi (cuja representação mais espantosa será a de Leonardo, leiloada o ano passado e devolvida às Galerias Uffizi, de Florença – ref. no gin de 6 de Dezembro de 2017), com dois dedos da mão direita levantados para abençoar a humanidade. O terceiro segura o náutilo como uma jóia.
Na tela total assoma uma cena muito concentrada da Natividade, onde cabem os pais e o Filho, os Magos, alguns pajens, um pastor e a tal profusão de símbolos. Vale a pena explorar o painel de Maíno, ao pormenor, através do link disponível no portal do Prado – https://www.museodelprado.es/en/the-collection/art-work/the-adoration-of-the-magi/3f1f4d63-0476-4ac0-904f-776713defe78.
Naquele recanto aconchegado de uma gruta sem tecto e abaixo do nível do solo, o céu marca presença da forma mais festiva através da luz quente da estrela que ilumina todo aquele espaço subterrâneo como o foco da câmara de filmar, pondo em evidência a estranheza da homenagem de VIP’s a um simples bebé. Um mistério que está muito para lá do alcance das palavras e ganha sentido de cada vez que o rumo da história se inclina em favor de um Bem, que parecia inalcançável. É o caso da boa notícia chegada do Paquistão, sobre os avanços no intrincado processo de Asia Bibi (1), condenada por ser cristã. Há dias, veio a lume o abaixo-assinado de mais de 500 clérigos muçulmanos paquistaneses a defender a libertação de Bibi, para honrar o sentido mais profundo do Islão. A designada «Declaração de Islamabad» foi publicada no Domingo de Reis – numa feliz coincidência de calendário – e pede uma resolução rápida e justa para o processo de Bibi, em risco de vida, apesar de ter sido ilibada pelo Supremo, por continuar impedida de sair do país. Aquele texto lança uma esperança que vai além do caso da pobre camponesa, exigindo respeito pelas minorias de outros credos religiosos, em especial pelos cristãos, que são o alvo preferido dos fundamentalistas maometanos. Declara-se, com frontalidade: «matar sob o pretexto da religião é contrário aos preceitos do Islão»!
A corajosa «Declaração de Islamabad» visa pôr termo às perseguições religiosas perpetradas em nome da «lei da blasfémia», que vitimou Asia Bibi e cristãos menos conhecidos. [portal da AIS] |
Concluindo com a simbologia dos presentes de Melchior, Gaspar e Baltasar, recordo as palavras lúcidas de Bento XVI, a devolver actualidade à desproporção e aparente inadequação das ofertas valiosíssimas doadas a uma pobre família da Judeia. Talvez o significado da visita, em si, se descortine, como porta-vozes das gentes de boa-vontade em busca do Deus que vem ao encontro do ser humano e quer ampliar infinitamente o perímetro do pequeno mundo judaico. Mas, à parte desse salto qualitativo, que sentido fez – e faz – doar ouro, incenso e mirra (2) ? «Sem dúvida, não são dons que correspondem às necessidades primárias ou quotidianas. Naquele momento, a Sagrada Família certamente teria tido mais necessidade de algo diferente do incenso e da mirra, e nem sequer o ouro podia ser-lhe imediatamente útil. Mas estes dons têm um profundo significado: são um acto de justiça. Com efeito, segundo a mentalidade em vigor nessa época no Oriente, representam o reconhecimento de uma pessoa como Deus e Rei: ou seja, são um acto de submissão. Querem dizer que a partir daquele momento os doadores pertencem ao soberano e reconhecem a sua autoridade.»
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
____________________________________(1) Na continuação do gin postado a 7 de Novembro de 2018.
(2) Na tradição cristã, é comum associar-se o ouro à realeza e sabedoria de Jesus; o incenso, à sua divindade e ao poder da oração; a mirra, à sua humanidade e ao valor de todo o sacrifício/entrega em favor do próximo.
Será sempre aborrecido e maçador chamar a atenção de alguém sobre o que se alcunha de politicamente correcto.
ResponderEliminarO rei citado não é de "etnia africana". Neste grupo cabem magrebinos, zulus, balantas, egípcios, quenianos, bosquímanes, eu sei lá...
O rei é de raça negra. Afirmação que será 'tão grave' como afirmar que os outros são de raça branca.
Os racistas — v.g., nos USA — é que inventaram os afro-americanos, os hispânicos e outras patetices.
Para mim, o que é mau é ser-se "preto por dentro". Aqui já é um insulto. E porquê?
ea