11 março 2019

"A nossa música prevê o nosso futuro"

Em Outubro do ano passado escrevi um post, a que intitulei Da música e dos povos, em que me questionava o que tinha surgido primeiro, se os povos se as músicas. Isto é, eram os povos que faziam a música ou era a música que fazia os povos. Por uma questão de arrojo irresponsável achei que a hipótese mais interessante era a última: era a música que definia o que os povos seriam. O tema ficou adormecido dentro de mim, até porque não tinha mais sabedoria para acrescentar ao tema.

Ontem jantei num restaurante semi-taberna que disponibiliza fado amador. Nunca fui grande apreciador deste tipo de fado mas fui com gosto, até porque iria conhecer gente potencialmente interessante. O acompanhamento era de qualidade superior ao dos cantadores, todos eles populares, amigos da casa, que fazem desta actividade o cumprimento de um gosto genuíno onde talvez não haja dinheiro envolvido. O estabelecimento é familiar e, numa dada altura, o dono e a cozinheira (casados um com o outro) dançavam na cozinha enquanto um tocador de harmónica se entretinha com a ternura dos quarenta acompanhado à guitarra e à viola.  

Tive uma espécie de epifania modesta, toda nascida, desenvolvida e desaparecida dentro de mim - e de mim apenas. O que diria o fado - talvez mesmo este tipo de fado - a um marciano ou a um habitante de uma outra época a quem fizessem a mesma pergunta, agora adaptada: foi o povo português que fez o fado, ou foi o fado que fez o povo português? O que diz de nós -  independentemente de quem fez o quê - um género musical (neste caso) deficientemente interpretado, embora genuíno, com letras que falam de amores perdidos, de ciúme, de saudade ou de traição? O que diz de nós um género musical triste, dolente, do qual não exala genica ou fulgor, um género musical que Eça considerou uma comédia, que alguém propôs trocar-se pelo canto coral, ou que foi acusado de fazer mal ao fígado…? Somos o que cantamos ou cantamos o que somos?

No seu livro Noise - The Political Economy of Music, Jacques Attali, o autor, refere (tradução minha): (...) É por isso que a economia política da música não é marginal, mas premonitória. Os ruídos de uma sociedade estão à frente das suas imagens e dos seus conflitos materiais. A nossa música prevê o nosso futuro. Imaginemos este trecho escrito no século XIX, quando surgiu o fado: a nossa música prevê o nosso futuro. Será que podíamos perceber onde estaríamos no início do século XXI? 

JdB   

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