04 março 2019

Dos telefones como elementos de suspeita

Vi o filme na Netflix. Não me lembro como se chama, sei que é francês. Eu conto a história: 7 amigos encontram-se para jantar. São três casais (um dos quais anfitrião) e há um deles que vai sozinho, porque a namorada, que o grupo ainda não conhece, está aparentemente doente. Os casais são absolutamente normais, com filhos pequenos num caso, com uma filha de 17 anos noutro. Médicos, psicólogos, advogados (talvez numa empresa), professor de ginástica, motorista de táxi. São amigos de longa data, desde os tempos do liceu. Num casal nota-se uma tensão, noutro uma paixão mais unilateral, noutro uma paixão sensual e biunívoca. Nada de extraordinário, portanto.

Numa dada altura, a propósito de uma manifestação de desconfiança por causa de telemóveis bloqueados ou não, alguém propõe um jogo: todos os telemóveis são colocados em cima da mesa e todas as mensagens, mails, telefonemas são partilhados em voz alta. Nota-se um incómodo aqui e ali, e o jogo passa a ser quase uma arma de arremessso, uma estratégia para provar qualquer coisa.

Os telefones vão tocando com sms ou correio electrónico. Os donos disfarçam, brincam, inventam, tentam fazer trocas subreptícias de aparelhos para disfarçar fotografias que entram. No espaço de uma hora, numa mesa de casa de jantar, percebe-se tudo: as fotografias sensuais ilícitas, os jogos de sedução ilícitos, a infidelidade dupla, uma homossexualidade escondida dos amigos, uma filha que partilha em alta voz a possibilidade da sua primeira noite sexual, uma operação estética nunca revelada, o desejo, também nunca revelado de por uma sogra intrusiva num lar.

O fim do filme é algo surpreendente: afinal o jogo nunca se jogou. "Já viste se tivéssemos jogado o jogo? Ainda bem que não..." Mas fica a dúvida - ou a certeza - de que a infidelidade dupla existia, de que um deles é homossexual e que havia, de facto, jogos sensuais virtuais e ilícitos.

Um telefone cabe numa mão. E é numa mão, e com uma mão, que se suspendem vidas conjugais, fragilidades que são fruto de uma suspeição legítima, suposta, assassina. Um telefone é algo pessoal, onde pode não haver qualquer ilicitude, muito menos comportamentos menos correctos. Mas aquele objecto pode matar a confiança que temos ou devíamos ter em quem vive connosco. Num ápice, um código que não se partilha, uma password que não se revela, é um véu que cai sobre o casal com o peso de uma conjectura, de um pressentimento relativamente ao qual se descortina, olhando para trás, inúmeros comportamentos que confirmam. 

Num telefone cabe tudo: as fotografias dos filhos ou das viagens, as agendas diárias, as notas de coisas a fazer, as frases singelas e inócuas que, ao menor deslize, se tornam armas de arremesso e guilhotinas que caem sobre uma tranquilidade genuína ou apenas ingénua.

JdB

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