12 junho 2019

Das perguntas como espécies desaparecidas


Fotografia tirada da net

Ernest Shackleton partiu de Plymouth para o Polo Sul a 8 de Agosto de 1914. A viagem a que ele se propunha foi um rotundo fracasso - não chegou ao destino. No entanto, toda a viagem do explorador inglês é um acto de enorme heroísmo: nas piores condições atmosféricas possíveis, sem comunicações, sem barco, com pouca comida, com uma equipa debilitada, com um frio antártico e sem cães, que foram sendo abatidos por questões de necessidade, conseguiu empreender o resgate de todos. Não ficou ninguém para trás.  

Em 1916 chegou a Elephant Island, na Antártida, um espaço reclamado pela Argentina, pelo Chile e pelo Reino Unido. Uma das primeiras frases que proferiu, dirigida ao responsável pela estação baleeira, foi na forma de pergunta: "diga-me, quando é que acabou a guerra?". A resposta foi cruel: "a guerra não acabou, há milhões de pessoas a morrer. A Europa enlouqueceu. O mundo enlouqueceu." 

Durante dois anos, Shackleton não teve notícias da Europa. Não porque não quisesse - tanto que se interessou - mas porque não conseguia. Não havia tecnologia. Shackleton era um explorador exactamente por isso - porque não havia tecnologia; hoje já não seria, porque onde quer que estivesse poderia falar com a mulher, ver os cães, saber notícias da vizinha do terceiro andar ou da política. Já ninguém é obrigado a estar dois anos incomunicável - ou se quer ou não se quer. 

A fotografia acima foi tirada no topo do Everest. A curiosidade não está na desolação da geografia ou no colorido dos fatos. O interessante da fotografia é o facto de revelar um engarrafamento. Num certo sentido caricatural, ir ao Everest é, hoje em dia, semelhante a ir à feira do livro num feriado: as pessoas amontoam-se, e temos de pedir com licença para nos chegarmos a um renque de livros em promoção. Todas estas pessoas que se veem na fotografia quiseram isso mesmo - picar uma espécie de ponto, tirar uma selfie, publicá-la em tempo real no instagram ou no facebook, falar com a namorada, a mãe, os filhos, o patrocinador.

Parece que a varíola já só existe em frascos. Parece que a ideia de explorador já só existe em livros de aventuras. Um dia haverá uma máquina de senhas para chegar ao topo do mundo, as pessoas acotovelar-se-ão para lá chegar, talvez empurrem um desconhecido para não correrem o risco de falhar o alvo, de não chegar lá acima em tempo útil.

"Tell me, when was the war over?" A frase, mais do que uma pergunta em inglês correcto, tem o encanto terrível das espécies desaparecidas. 

JdB   

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