29 julho 2019

Da (falta de) limitação

Na sua crónica de sábado, no Observador, Alberto Gonçalves diz: "[r]ecentemente, deparei na internet com uma senhora que se considera “guerreira”, casada com um “marido guerreiro” e mãe de dois “filhos guerreiros”.

No seu livro 12 Regras para a Vida, com subtítulo Um Antídoto para o Caos (Lua de Papel, 2018), Jordan B. Peterson diz a dada altura: "[c]ontei-lhe uma antiga história judaica, que acredito ser parte do comentário à Torá. Começa com uma pergunta estruturada como uma máxima zen. Imagine um Ser que é omnisciente, omnipresente e omnipotente. O que falta a tal Ser? A Resposta? Limitação." 

***
Os dois excertos - um de um artigo de jornal, outro de um livro - têm mais em comum do que possa pensar-se. Não comparo Jordan Peterson com Alberto Gonçalves (estão em planos distintos), menos ainda comparo a senhora guerreira, que não sei quem é, com Deus (estão em planos ainda mais distintos). Em que se intersectam então ambos os textos? Na ideia de limitação ou, melhor ainda, na ideia de falta de limitação.

Há um certo horror à limitação nos dias que correm. Por um lado, as revistas cor de rosa estão cheias de pessoas felizes, guerreiras, com sucesso, a viverem permanentemente o seu grande amor, a terem dias de grande cumplicidade com o(a) último(a) parceiro(a) ou com o filho que lhes dá uma sensação de completude, de alegria e de proximidade. Isto aplica-se, obviamente, àquilo que as pessoas dizem de si, não o que as revistas dizem dessas pessoas.

Num certo sentido falta limitação à sociedade. Falta pessoas que digam que não conseguem, que têm dificuldades, que erraram, que escolheram caminhos inadequados, pessoas incertas, carreiras desajeitadas. Falta pessoas que digam que desistiram, ou que não desistiram, não porque eram lutadoras, mas porque tiveram ao lado alguém que não as deixou desistir. 

Já vivi a idade do sucesso profissional; a minha rede social é composta por muita gente que está reformada ou que para lá caminha. Mas houve o tempo em que as conversas eram sobre as promoções, sobre os benefícios, sobre as respostas que inpunham respeito ou, como me disse um gestor de conta com um gabinete com vista para um beco: ainda ninguém percebeu que...  

A propósito de limitação, ou de falta dela, vale a pena reler os primeiros versos do Poema em Linha Recta, de Fernando Pessoa. Até porque o que aproxima as pessoas são as fragilidades, não são os sucessos.

Nunca conheci quem tivesse levado porrada. 
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
(...)

JdB  

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