18 setembro 2019

A saúde que não se deseja *

O post de hoje é longo e repescado de memórias com 11 anos. Setembro é o mês de sensibilização para a oncologia pediátrica - daí a campanha Setembro Dourado em tantos países do mundo. Por outro lado, o board da Childhood Cancer International, uma confederação mundial de associações de pais e crianças / jovens com cancro receberá em Outubro um novo membro. Chama-se Daniel e vem do Zimbabwe, de uma organização chamada Kidzcan, curiosamente (ou não, porque não há coincidências) a mesma organização que conheci esta semana, mas em 2008. Talvez ele fosse uma das pessoas que trabalhava num contentor, juntamente com a sobrevivente que me abraçou fortemente e disse you're an angel... Se querem perceber do que falo leiam o texto abaixo.

JdB   

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O cancro pediátrico é um drama em qualquer parte do mundo: o confronto com uma doença que se julga de velhos, o desconhecimento dos seus efeitos numa criança, o choque e o horror da palavra que se conjuga com a antevisão de um luto, as estatísticas lidas desequilibradamente em função do estado de espírito, a sensação de impotência, o pânico da dor e do sofrimento, a certeza obsessiva da incapacidade do sistema de saúde, a procura desesperada de alternativas supostamente mais eficazes e menos nocivas, o vocabulário técnico e de compreensão difícil, as noites em claro, as lágrimas que correm até ao limite da resistência, a esperança e a descrença lado a lado.

Falo do que sei por experiência própria e por aquilo que vou vendo, sabendo, intuindo. Com o diagnóstico que se ouve a nossa boca abre-se de espanto, de pavor, de incapacidade de soltar uma frase. Começa então uma aventura com um final imprevisto, porque não há autor da história para decidir o destino dos personagens: umas vezes o herói vai ao encontro do pôr-do-sol com um sorriso nos lábios, outras fica no local da batalha, porque a vida e o mundo estão longe de ser o paradigma da justiça.

Ser-se criança no Zimbabué é difícil – porque é difícil ser-se o que quer que seja neste país, se exceptuarmos os poderosos. Ser-se Pai (no duplo sentido da maternidade / paternidade) é um desafio, porque as dificuldades com que se luta diariamente são de monta: a escassez de bens essenciais, a fome (não se imagina o que se deve passar nas zonas rurais), um sistema financeiro incompreensível para qualquer doutorado, uma inflação de 3500% que destrói qualquer vislumbre ingénuo de planeamento caseiro, ordenados mensais inferiores à moeda que damos aos arrumadores de carros.

Hoje estive num hospital grande de Harare, onde visitei a ala das crianças com cancro. Era dia de chegada de novos doentes, e imaginei o que ia na cabeça daquelas mães para quem tudo isto é de uma violência sem nome, porque não têm apoios, o serviço de saúde não funciona, não têm dinheiro para utilizar num sistema de transportes que de qualquer forma é inexistente. Falei com dois médicos novos, pediatras, cujo salário mensal ronda o equivalente aos três dólares mensais. Como sobrevivem? Fazendo biscates por fora, envergando a camisola da missão que se escolhe, não do emprego que se tem.

Neste hospital funciona uma escola. As fornadas de licenciados são lentas, não por dificuldade intelectual de quem aprende, mas pela inexistência de gente que ensine. Os salários são tão baixos que os profissionais desertam. É por isso que a ala de que falo não tem oncologista pediátrico – está na Pensilvânia a trabalhar.

A falta de dinheiro sente-se em tudo: no gabinete do pediatra a quem ainda não deram um telefone nem uma linha de internet; no líquido desinfectante dos médicos que vem numa garrafa de 33 cl e é doseado pela tampa; na ausência de idas ao estrangeiro para assistir a uma conferência, tomar contacto com o outro mundo; na ausência de reagentes, o que torna o diagnóstico um exercício de adivinhação; na inexistência de drogas para o cumprimento dos protocolos de quimioterapia; na incapacidade de retenção de pessoal técnico qualificado; no desaparecimento de amostras para exames; no sonho ingénuo de ter exames básicos – ressonâncias magnéticas, TACs, etc. A falta de dinheiro sente-se ainda no resultado de tudo isto: crianças que morrem, devido, exclusivamente, à ausência de tratamentos adequados mínimos. Eu conheci um potencial exemplo: rapariga, quatro anos, leucemia, uma cara de chocolate a olhar para a mãe com uns olhos mansos e redondos, sentada numa cama sem perceber o que se estava a passar.

Conheci também a Kidzcan, uma organização zimbabueana ligada à Igreja (de Inglaterra / Escócia, presumo) que faz o impossível e o errado: substituir-se ao Estado. Quais as prioridades? Arranjar os medicamentos (uma actividade exercida no máximo sigilo e segurança para que nada aconteça), apostar no diagnóstico correcto (a ausência de diagnóstico precoce aumenta brutalmente a mortalidade infantil), apoiar as crianças. Paralelamente a isto ajudam os médicos no que podem, fazem angariação de fundos num país cujo tecido empresarial é inexistente ou mais frágil do que um pergaminho, garantem o transporte das crianças para os tratamentos. Como não há dinheiro, ou a criança fica abandonada no hospital porque os pais fogem espavoridos, ou regressa num estado terminal, quando pouco mais há a fazer do que garantir a qualidade na morte.

Peço desculpa pela dimensão do post de hoje, sobretudo não tendo a criatividade ligeira das noites de karaoke ou a descrição paisagística dos safaris em reservas. Quem teve a coragem e a paciência para chegar aqui, pode imaginar o que foi a minha manhã. Tudo foi compensado com a ternura da responsável da Kidzcan (uma sobrevivente) que, ao terminar a reunião nas instalações da associação (um cubículo com 15 metros quadrados), fez questão de me abraçar fortemente, agradecer a minha visita e dizer:

- You’re an angel ...

JdB

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 * publicado originalmente a 16 de Setembro de 2008

1 comentário:

  1. Pode e deve republicar. Até cada ano.
    Não há nada como a 'experiência própria' para nos ensinar como é a Vida: no início, no meio e no fim. Também é pelo sofrimento que ela transporta, que passamos do estatuto de humanos para o estatuto de anjos.
    Ao fim de uns 15-20 anos, eu passei a ensinar a fedelhos, no hospital universitário, que eu conhecera alguns anjos a praticar (ilegalmente) enfermagem e medicina.

    Abraço
    ao

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