13 setembro 2019

Do passado e da felicidade

No ano passado, num casamento, fui abordado por uma sorridente senhora da minha idade: 

não se lembra de mim? 

Sofro, hoje em dia, de uma falha incomodativa: não fixo caras e, se "desenquadro" a pessoa em questão, não há hipótese de a reconhecer. Porém, estava certo de que nunca a tinha visto. Sorriu mais abertamente e elucidou:

sou fulana...

Abri a cara num sorriso grande e estivemos na iminência de um abraço. Não via fulana há 45 anos, talvez. Rimo-nos, contámos coisas, relembrámos pessoas e épocas. Agradeci-lhe muito o facto de, impulsionada pela irmã a quem eu tinha perguntado por ela, me ter vindo falar.

Tive um gosto enorme em ter revisto fulana? Nem por isso: o gosto adveio, muito simplesmente, de naquele sorriso que trocámos eu ter revivido uma época feliz. Fulana foi o veículo que permitiu o regresso a um passado que me deu muito prazer. Em bom rigor não troquei nenhum sorriso ou nenhum beijo com fulana. O meu sorriso, o meu sinal de afecto, foi para uma época que dista 45 anos - ou mais. Beijei o intangível através do beijo ao tangível. 

A felicidade é sempre um movimento do corpo sobre o passado, porque não podemos sorrir para o futuro, que não sabemos se existe. Sorrimos para o nascimento de um neto, para a alegria de um filho, para a amabilidade de um amigo: esse sorriso é sempre, decorrido um nanossegundo, sobre o passado, porque o presente é terreno de passagem. Tudo em nós já foi, nunca será, escassamente é.  

Olhar sobre o passado - mesmo que o passado seja a semana anterior à presente - é olhar sobre o certo, o conhecido, o existente. A nossa felicidade (ou o seu contrário) é sempre um exercício de memória, de recordação. A ideia de felicidade do professor Zandinga, que previa o futuro, é uma arma para iludir néscios. Somos felizes porque lembramos, não porque prevemos. Somos felizes porque temos passado, não porque desejamos futuro.

JdB   

2 comentários:

  1. «Somos felizes porque temos passado, não porque desejamos futuro.»

    Ideias como esta — que é uma Verdade — são raras e são, raramente, divulgadas.
    Muito o felicito.

    Abraço do ao

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  2. "Somos felizes porque lembramos, não porque prevemos. Somos felizes porque temos passado, não porque desejamos futuro."

    Certo, o passado conforta, dá-nos força, conhecimento, experiência e, acima de tudo, energia para aproveitar o que vem. O que foi já era. Não se vive o ontem, revive-se apenas. Só se vive o hoje, o efémero hoje. O amanhã é o que nos está sempre a desafiar, porque o ontem já era.
    Fui!
    montada numa vassoura

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