Deus para lá da misericórdia
O entendimento que habitualmente se tem de misericórdia, fazendo desta uma reação a algo de negativo, diminui a grandeza do que a misericórdia é como ato. Entendida a misericórdia em termos divinos, imediatamente esta diminuição da sua grandeza implica que Deus seja visto como reativo, o que diminui ontologicamente Deus.
Ora, a misericórdia não se entende no que é a sua grandeza própria se não for intuída primeiro como ato divino e como ato divino paradigmático. Não é propriamente Deus isso que precise de um pretexto negativo para ter como ato – reativo – misericórdia.
A referência que o termo tem ao étimo «coração» não implica uma qualquer comoção inspirada na emotividade humana e projetada sobre Deus, mas que o ato de bem próprio de Deus tem como fonte o âmago – coração – de Deus: tal ato não é superficial, como o são todos os atos reativos, cuja razão os transcende, mas tão profundo quanto é o mais fundo do ser de Deus.
É, aliás, esta referência cordial que permite que se compreenda o que significa que «Deus cria a partir do nada»: cria sem o “nada” que não seja este seu coração; basta-lhe a grandeza ontológica infinita do «coração» para criar, não precisa de mais coisa alguma, matéria ou espírito.
Sendo assim, o grande ato de misericórdia consiste precisamente em “retirar” o absoluto do ser do seu absoluto relativo nada (não é um jogo de palavras), quer dizer, de isso que é o «coração» de Deus: o coração de Deus é o «nada» de que tudo é tirado, corresponde a um infinito metafísico de possibilidade, de que tudo pode tomar o ser, segundo o fiat de Deus.
O grande ato de misericórdia é, então, e nunca é demais relembrá-lo, o ato da criação do ser mundano. Tão santa misericórdia é, que Deus proclama tudo o que põe em mundano ser como bom, seja ato já concretizado ou possibilidade de ato a concretizar, segundo o mesmo absoluto de misericórdia com que foi posto no ser. Percebe-se que o mal é o que é posto em ser segundo a perversão do princípio – único – da misericórdia. É isto o pecado.
Ora, o que o texto sagrado de Job nos mostra é que a misericórdia de Deus como possibilidade oferta a Job encontrou na ação deste uma resposta perfeita. O próprio Deus proclama Job como bom, isto é, sem pecado; misericordioso ao modo de Deus, portanto.
Todavia, por causa da maldade presente no mundo e maximamente personificada na figura do Satã, que lança a pública dúvida sobre a bondade de Job como pura bondade, fazendo desta uma mera resposta comercial à bondade de Deus, Job tem de ser posto à prova, sem que possa ser de outro modo, que nunca permitiria que Job se manifestasse como realmente bom (a própria palavra de Deus fora posta em causa e Deus não pode usar de violência, sob pena de não ser Deus).
Conhece-se a narrativa longa da provação total de Job e da sua permanência como fidelidade em ato ao bem que Deus em si pôs, isto é, como fidelidade à misericórdia criadora de Deus: Job chega a mostra-se mais misericordioso para com uma falsa imagem de Deus que primeiro lhe aparece do que esta mesma imagem, assim provando que era bom e que Deus era bom porque o tinha feito e proclamado bom.
O que é fundamental perceber-se é que Job era mesmo bom, impecado, misericordioso, a seu modo, como Deus, a seu modo. Então, a misericórdia com que Deus trata Job não se deve a qualquer falta de Job, mas à necessidade lógica – e é a única divina – de Deus ser como é, misericordioso, independentemente do mais.
A misericórdia de Deus para com Job não responde a uma qualquer forma de dom que compense uma carência qualquer, antes, à continuidade de um dom que é o mesmo desde que Deus criou o mundo, como ato que transcende o entendimento do que possa ser a misericórdia como ato de relação entre criador e criatura, pois precede a criatura.
Então, em Deus, a misericórdia é algo de diverso, não apenas de diferente, do que é na criatura, mesmo naquela paradigmatizada em Job (Maria, também). Deus está para lá desta misericórdia pós-criação. Esta misericórdia segunda, a da relação com as criaturas, é a forma manifesta – a manifestação é a própria criação – do que Deus é como absoluto de ato – de ser –, como riqueza de tal modo grande que só encontra plenitude no dom da diferença, dom que coincide com isso a que se chama amor, posto em ato por isso a que se chama vontade.
De notar, que estes são apenas nomes que damos a realidades que, mesmo de algum modo vivendo-as, não dominamos. É a esta mesma misericórdia como ato de vontade como ato de amor, quer dizer, em que criamos o outro pelo bem que em seu sentido operamos, que os seres humanos são todos convidados.
Estamos muito longe de um ato reativo ou de um Deus de fracos e de doentes, esse que foi criado à imagem e semelhança dos cobardes e que foi criticado por Nietzsche. Não é este o Deus de Job e não é este o Job de Deus.
Que Job sou eu?
Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
Publicado pelo SNPC em 04.09.2019
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