O meu nome é Andreia, e tenho 35 anos.
Para que precisamos dos olhos, se o essencial se vê com o coração?
Porque não assumimos o tacto como a extensão privilegiada da mente para identificar as coisas materiais e os contornos humanos?
Porque não escutamos com atenção, decifrando os ruídos que identificam os pássaros, as emoções audíveis, os movimentos da terra e das pessoas?
Porque não usamos o olfacto como o usam os animais que tudo identificam pelo cheiro, como se mais nada fizesse falta para deambularem pelo mundo na sua felicidade sem fingimento nem dissimulação?
O mundo é feito de excessos: dinheiro, comida, prazeres carnais, obras de arte, amigos, livros, publicidade, telenovelas, enganos da realidade, carros em circulação, níveis de radioactividade, fotografias digitais. Dentro de nós são os sentidos e os seus descomedimentos. Nada parece chegar para esta voragem colectora de bens e sentimentos.
Como conseguimos abarcar tudo isto num cérebro que definha sem retorno, numa memória que se esgota como bem precioso, numa alma cuja existência suscita dúvidas? Como arrumamos os cheiros, as texturas e as formas, os sons da natureza e dos gatos, dos motores potentes e das conversas? Como guardamos o contorno de umas costas ou de uma mão calejada se não for de olhos fechados? O que fazemos com esta panóplia de sensações que nos invade e ocupa os espaços livres de uma máquina envelhecida? Porque não conseguimos fechar uma assoalhada do cérebro, viver num espaço diminuto, alcançar tudo com uma mão aberta?
Cresci sem medo. Talvez um destemor, uma indiferença aos perigos que espreitam em cada esquina, em cada pessoa, em cada circunstância. Talvez uma ousadia no desafio à vida. ‘Uma imprudência’, dizem-me. Talvez.
Toco, cheiro, oiço. Desenho imagens, adivinho sinuosidades do outro, encosto os barulhos a quem os produz, ligo os risos a uma boca bem desenhada, a uns dentes brancos com uma assimetria elegante. Passo os dedos por um corpo esculpido de humores e cheiros. Sinto-lhe o peito, as coxas musculadas, adivinho-lhe tudo.
Não tenho medo de nada. Não receio voar, nadar na imensidão do oceano, correr na direcção do precipício, parar um instante antes da queda.
O meu nome é Andreia, e tenho 35 anos. Cega de nascença, a técnica devolve-me hoje, quando o sol se puser no fio do horizonte, a visão que nunca tive. Nada receio, nem sequer o meu destemor. Só tenho medo da desilusão. Ou do excesso.
JdB
* publicado originalmente a 11 de Dezembro de 2013, no âmbito de um concurso de escrita criativa em que participei
Trecho engraçado. Fez-me sorrir. Apreciação e sorriso advindos, se calhar, das minhas costelas profissionais.
ResponderEliminarJá agora, a classificação que ele teve, merecida ou não, no tal concurso?
ao
ao,
ResponderEliminarObrigado pela visita continuada.
Neste casa a classificação que "ele teve" é a classificação que "eu tive", já que o texto é meu. Já não me lembro bem: Sei que com este texto passei da casa dos 60 para a casa dos 20. E penso que terminei nos 5 ou 6 primeiros. Foi um exercício engraçado. Se tivesse ganho publicariam qualquer coisa; como não ganhei sou editor e dono do estabelecimento. O país ficou a ganhar.