O Fernando Pessoa tem uma linha de um verso que diz assim: morrer é só não ser visto. Gostaria que a frase fosse apenas morrer é não ser visto para suportar melhor o meu raciocínio. Para o poeta seria quase indiferente; para mim não, pelo que vou apropriar-me da frase e tirar-lhe o só.
Morrer é não ser visto pode ler-se de duas formas: (i) no acto de morrer nada mais há do que um desaparecimento da vista de uma comunidade; (ii) o desaparecimento da vista da comunidade é uma morte. Ambas as leituras se prendem com a ideia de uma não existência. O que significa, de facto não existir?
Um pêssego, tal como parte substantiva de artigos ao cima da terra - de máquinas de escrever a carros, passando por pessoas e jarras de flores - tem uma dupla valência: uma valência estética e uma valência funcional. A sua existência serve esses dois propósitos, e nesse sentido difere, ou pode diferir, de outros artigos que apenas tenham uma valência estética ou apenas uma valência funcional. A maciez da pele, a perfeição das formas ou da cor, a sua consistência ou a sua doçura são atributos do pêssego. Um parafuso não tem - ou tem-na em reduzida dimensão - uma dimensão estética; a sua funcionalidade domina tudo.
Qual é a diferença - grosseiramente falando - entre o parafuso e o pêssego? A dupla valência de um, a valência singela do outro. O pêssego surge-nos como estética e função; o parafuso apenas como função.
O que é uma pessoa? Esquecendo a biologia, a atendo-nos ao tema em apreço, uma pessoa é estética e função. Existe como ser e como fazer; existe como estar e como produzir. Ao contrário do pêssego, que é o que os outros vêem nele, uma pessoa é (também) o que quer revelar aos outros: num raciocínio mais arrojado, uma pessoa pode ser um pêssego ou pode ser um parafuso. Como é que essa pessoa se constitui? Como é que essa pessoa quer ser vista, lembrada para a posteridade?
O que significa, de facto não existir? Para o parafuso, a não existência deriva de uma cabeça romba, de uma ranhura esbeiçada, de um fio de rosca excessivamente desgastado. Não existir deriva da ideia de não funcionar. Para o pêssego, pelo seu lado, a sua não existência deriva da sua deglutição ou da sua eliminação fortuita ou intencional; isto é, mesmo azedo, o pêssego mantém uma forma aprazível, mesmo deformado mantém uma textura suave. O parafuso inexiste quando não funciona, o pêssego inexiste quando desaparece.
Como é que me constituo como pessoa? Como um parafuso ou como um pêssego? Se o fazer domina tudo, quando nada tenho a fazer, ou quando já não posso fazer tudo, inexisto. Se eu tiver uma dupla valência, consigo existir quando faço menos, ou fazer quando existo menos. Mas menos é comparação, não é eliminatório, não significa o vazio.
Sou para a comunidade o que quero mostrar à comunidade. Existo na medida em que me revelo; melhor, na forma como me revelo. Estar é tão importante como fazer. Ser é tão importante como produzir. A dupla valência é uma reserva, um plano B, um sistema em paralelo, uma redundância que confere segurança. Quando não faço, sou; quando não sou, produzo.
A não existência é a morte daquilo que nos constitui, daquilo por que nos constituímos, ou daquilo por que nos constituem os outros. A não existência é a morte daquilo que mostramos, daquilo que queremos mostrar, do que queremos apor no cartão de visita. Somos mais do que aquilo que fazemos, porque o fazer é um sucedâneo do ser. A mão mexe em resposta a um impulso do cérebro; o cérebro actua em função de um desejo. O importante, nesse sentido, é o desejo que motiva, não a mão que age. Movimento sem motivação intrínseca é desperdício de energia. Fazer sem porquê é não encontrar o porquê para fazer.
A transparência humana é, na sua grande maioria das vezes, estou em crer, uma construção do próprio; isto é, uma intencionalidade da intimidade, seja qual for a motivação. Não tenho o azar de ser transparente, disponibilizei-me para ser transparente ou, num caso mais extremo, quis ser transparente. E se sou transparente não existo enquanto ser, apenas enquanto fazer. Se não sou visto morri, na frase do Pessoa. Em bom rigor, não acontece sermos transparentes para os outros, quisemos ser transparentes para os outros, por mais frágil que seja o processo de decisão a montante.
Morrer é (só) não ser visto. Talvez precisemos, por isso, de ser pêssegos, e não ser parafusos. E talvez precisemos de dizer frente a um espelho: sou um pêssego, não sou um parafuso. Não precisamos de dizer que somos um pêssego bom, ou bonito, ou sumarento; basta dizer que somos um pêssego, que a beleza está nos olhos de quem vê. Não é a oratória de solilóquio do pêssego que lhe dá beleza, mas o olhar da comunidade sobre o pêssego.
* Alberto Collins de Carvalho, in Textos esparsos sobre a fluidez da vida
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