28 janeiro 2020

Textos dos dias que correm *

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Venho falar-vos de como tento combater a toxicidade na minha vida. Para ser justa, devo começar por dizer que sou imune ao apelo das redes sociais. Estou, por isso, poupada a uma das maiores armadilhas do nosso tempo. Fui das últimas, entre família e amigos da minha geração, a comprar um telemóvel, continuei a não gostar de falar ao telefone e a minha incompetência tecnológica torna tão penosa qualquer interação com máquinas que, passados todos estes anos, tenho apenas uma página profissional no Facebook, que me foi criada na RTP, e que passo meses sem frequentar. De vez em quando, recebo uma mensagem automática a dizer que não sei quantos “milhares de pessoas” sentem a minha falta, coisa que, francamente, nunca me convenceu.

Ou seja, o meu testemunho nesta matéria não será útil a ninguém. A minha imunidade à febre das redes não tem qualquer mérito: é natural, endémica.

Mas há outros buracos negros onde estou sempre prestes a perder-me. Por exemplo, é-me tão deliciosa a dormência do álcool que até gosto de anestesias gerais – imaginem! Como dizia um tio meu, uma das pessoas mais bem-dispostas que conheci na vida: “é muito difícil aguentar tudo isto sóbrio.” E como ele, também eu gosto de fumar. Se o meu corpo aguentasse, fumava ininterruptamente. Para mim, beber e fumar são muletas muito eficazes para combater a ansiedade e grandes facilitadoras da criatividade. Por exemplo, parece-me que hoje o jazz, a música de jazz, perdeu fulgor agora que tantos músicos são abstémios e vegetarianos e cuidam especiosamente da sua saúde, tão longe do derramamento de paixão, do desbragamento de geniais artistas no passado.

Estarão a pensar que enlouqueci. Que vim fazer a apologia do alcoolismo para um encontro organizado por jesuítas. Não. O que quero dizer-vos é que o desafio, a grande dificuldade é conseguir experimentar o fulgor do encontro comigo mesma, com o outro, com a experiência espantosa de estar viva sem o recurso às minhas muletas dilectas. Desde há mais de vinte anos que me imponho periodicamente a abstinência. Montada exclusivamente na força que dou à decisão, passo às vezes um ano sem beber e sem fumar. Não consigo explicar-vos o quanto me custa, mas a partir daqui podemos começar a falar a sério sobre Renúncia.

A renúncia é uma das práticas mais desintoxicantes que conheço. Muito para lá do benefício que, no meu caso, representa para a saúde do meu corpo deixar de beber e de fumar, na renúncia a verdadeira desintoxicação é espiritual: há medida que os dias passam, a percepção sobre o poder da minha vontade aumenta. E aumenta a capacidade de focar naquilo em que quero focar-me, aumenta o sentimento de audácia. À medida que a prova de renúncia avança, sinto que tenho poder efectivo no desenho da minha vida. Não sou especialista em exercícios espirituais, mas estou a partilhar aquilo que funciona para mim. A renúncia a práticas que me são muito queridas funciona. Presumo que possa funcionar para cada um de vocês, com aquilo a que mais vos custar renunciar.

Avancemos. Não será por acaso que as religiões dos quatro cantos do mundo prescrevem o jejum (a renúncia de que já vos falei) e a caminhada. Para mim, deambular, ir olhando e vendo sem outro destino que não o de olhar e ver, é delicioso. Caminhar sozinha também é muito bom. E tanto melhor se a caminhada for longa e se apresentar algumas passagens difíceis, onde terei de me desligar do ruído do mundo e concentrar-me absolutamente para não cair. Mas peregrinar é muito diferente de caminhar e ainda mais diferente de deambular. Peregrinar implica um programa. Para mim, que sou cristã, peregrinar é caminhar orientada pela palavra de Jesus. É que o processo de procura de um diálogo mais absoluto comigo mesma não tem esse diálogo comigo mesma como finalidade. Como cristã, aquilo que verdadeiramente me interessa é conseguir que esse encontro abra a porta a Jesus: ao seu espírito. Porque é dentro de mim que tenho de criar condições para O encontrar. E esse encontro – sempre lamentavelmente intermitente – ilumina a minha vida e acalma a violência que há em mim.

Peregrinar é muito bom. Sobretudo se for com pessoas que não conhecemos de parte nenhuma. É-me familiar a tentação de me inscrever com amigos na mesma peregrinação. Mas posso afirmar-vos que a peregrinação que mais me transformou fi-la com pessoas que não conhecia. Para tornar mais claro o que estou a querer dizer, dou-vos um exemplo. Quando se inscreve uma criança num campo de férias em Inglaterra para aprender inglês é bom que ela não vá com amigos portugueses. Se for com amigos de casa tenderá a não se integrar e a não integrar o novo idioma, tenderá a não sair da sua zona de conforto, vai regressar com mais três ou quatro palavras no seu vocabulário e imensas histórias para contar sobre meninas e meninos com quem não chegou a estabelecer relação.

Eu não aspiro a instalar-me longe do ruído do mundo. Eu amo o ruído, a perigosidade do mundo. Aquilo a que aspiro é à consciência iluminada da experiência do mundo, da experiência da vida, da experiência dos outros, da natureza, da arquitectura, da música, da literatura, de um belo arroz de tomate. Aquilo a que aspiro é a dissipar “o nevoeiro que me impede de ver a grande beleza do lugar onde me encontro.” E na persecução deste desejo tenho a imensa graça da Fé.

Como cristã, aquilo que verdadeiramente me interessa é conseguir que esse encontro abra a porta a Jesus: ao seu espírito. Porque é dentro de mim que tenho de criar condições para O encontrar. E esse encontro – sempre lamentavelmente intermitente – ilumina a minha vida e acalma a violência que há em mim.

Orar. Não rezo muito, mas não me permito rezar sem intenção. Se me apercebo de que debitei distraidamente uma oração, repito-a com toda a intenção. Como se diz no Fado: rezo para entregar. E rezo muitas vezes no silêncio imposto de uma insónia ou de uma ressonância magnética ou de uma viagem de automóvel solitária. Também gosto muito de rezar o Pai-Nosso em comunidade.

Finalmente: Ler. A leitura de Ensaio, de Ficção e, acima de tudo, de Poesia é das práticas mais cristãs que conheço. É dispor-me a escutar dentro de mim um outro; não O Outro (esse Outro geral, politicamente correcto, de que tantas vezes falamos), mas um outro, singular. Ler é escutar cá dentro a voz de um outro que, por mais diferente que seja de mim, é Um como eu. Passei e passo parte da minha vida a ler. A intimidade que a leitura oferece do espectáculo tremendo e maravilhoso da humanidade alimenta a minha compaixão.

Termino com uma passagem da biografia de Pedro Arrupe. Muitos nesta sala terão ouvido falar de Pedro Arrupe, que foi Superior Geral da Companhia de Jesus entre 1965 e 1981. O jesuíta Pedro Arrupe morreu em 1991 com 84 anos investidos – não digo gastos, digo investidos – numa vida impressionante. Sobre Pedro Arrupe, que quis e a partir de 1938 conseguiu missionar no Japão durante mais de duas décadas, podia contar-vos coisas de pasmar. Mas escolhi uma passagem, relativa ao ano de 1942 em Nagatsuka (a seis km de Hiroxima). Para mim é uma passagem particularmente inspiradora:

“A ligação estreita com o eu profundo explicará muitos dos êxitos do padre Arrupe no Japão. A sua autenticidade, a sua unidade interior, a sua simplicidade e a transparência da sua alma convenciam mais quem o ouvia do que as suas palavras ou as suas actividades. Arrupe começou a fazer a meditação cristã em postura zen, conseguindo assim um tipo de oração cósmica que ultrapassa técnicas e escolas.

Arrupe (…) começou a praticar tiro ao arco como experiência preliminar. Diz-nos ele: (…) “Pedi para me ensinarem e deram-me as explicações que lhes pareceram necessárias. Foi esquisito, esperava que dissessem: ‘Fixe o olhar no mato (alvo)’. Mas o que disseram foi: ‘Não se preocupe com o mato, não é importante se lhe acerta ou não, o importante é identificar-se com ele. Quando isso acontecer, solte a seta com serenidade e ela seguirá sozinha para o alvo. Se estiver preocupado e tiver os nervos em tensão, em vez da corda, o alvo não será atingido’”.

(…) Era a busca do centro do ser a sobrepor-se à postura competitiva. Foi o que aconteceu com um francês que, depois de meses de prática de tiro ao arco, conseguiu disparar com desapego, o que levou o mestre a fazer uma profunda vénia e a dizer: ‘O arco disparou’”[1].

* Paula Moura Pinheiro, publicado pelo Ponto sj em 24 de Janeiro de 2020

[1] Pedro Miguel Lamet, Pedro Arrupe, Tenacitas/A.O., Coimbra 2004, pp. 141-142

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