21 fevereiro 2020

Textos dos dias que correm

S. Miguel, Açores, Maio de 2015

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O seu interesse fixou-se quando Paneloux disse vigorosamente que havia coisas que se podiam explicar em relação a Deus e outras que não se podiam. Havia, decerto, o bem e o mal e, geralmente, as pessoas sabiam explicar facilmente o que os distinguia. Porém, a dificuldade começava no interior do mal. Havia, por exemplo, o mal aparentemente necessário e o mal aparentemente inútil. Havia Don Juan enterrado nos infernos e a morte de uma criança. Pois que, se é justo que um libertino seja fulminado, não se compreende o sofrimento de uma criança. E, na verdade, nada havia de mais importante na Terra que o sofrimento de uma criança e o horror que esse sofrimento arrasta com ele e as razões que é preciso encontrar-lhe. No resto da vida, Deus facilitava-nos tudo e, até então, a religião não tinha méritos. Aqui, pelo contrário, ele punha-nos entre a espada e a parede. Nós estávamos, assim, sob as muralhas da peste, e era à sua sombra mortal que nos era necessário encontrar o nosso benefício. O padre Paneloux recusava até as oportunidades que lhe permitissem escalar a muralha. Ter-lhe-ia sido fácil dizer que a eternidade das delícias que esperavam a criança podiam compensar o seu sofrimento, mas, na verdade, ele nada sabia. Com efeito, quem podia afirmar que a eternidade de uma alegria podia compensar um instante de dor humana? Não seria um cristão, certamente, cujo Mestre conheceu a dor na Sua carne e na Sua alma. Não, o padre ficaria ao pé da muralha, fiel a esse esquartejamento de que a Cruz era o símbolo, frente a frente com o sofrimento de uma criança. E diria sem temor aos que o escutavam nesse dia: 'Meus irmãos, chegou o instante. É preciso crer tudo ou negar tudo. E quem de entre vós, ousaria negar tudo?'

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Nesse instante dizia o padre que a virtude da aceitação total de que falava não podia ser compreendida no sentido restrito que se lhe dava habitualmente, que não se tratava da banal resignação, nem sequer da difícil humildade. Tratava-se de humilhação, mas de uma humilhação consentida pelo humilhado. Sem dúvida o sofrimento de uma criança era humilhante para o espírito e para o coração. Mas era por isso que era necessário passar por essa prova. Era por isso - e Paneloux afirmou ao seu auditório que o que iam ouvir não era fácil de dizer - que era preciso contemplá-lo, porque Deus assim o queria. Só assim o cristão não se pouparia a nada e, fechadas todas as saídas, iria ao fundo da escolha essencial. Escolheria crer em tudo, para não ficar reduzido a negar tudo.

Albert Camus, A Peste

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