11 março 2020

Vai um gin do Peter’s ?

ALGUÉM AGUENTA 10 ANOS EM QUARENTENA?... SIM, OS SÍRIOS

Há anos, ouvi de viva voz o testemunho de uma estrangeira radicada na Síria, cristã, a transmitir uma perspectiva da guerra e da governação de Bashar al-Assad nos antípodas das versões propaladas nos media ocidentais, onde as notícias tomam o conflito por uma cruzada justa para depor um presidente iníquo. A receita apresentou-se simples, como um gesto generoso e justiceiro do Ocidente para libertar o povo sírio das garras do maior déspota da actualidade. Por azar, estamos em época de déspotas e calha que Assad não é o pior, apesar de sanguinário e prepotente. Basta compará-lo com o vizinho Erdogan ou ouvir o que dizem dele os inúmeros estrangeiros radicados no país e que ainda conseguem ter alguma voz, para além de sírios menos alinhados com o regime. 

Aquele país economicamente próspero e rico em matérias-primas, que se atrevia a seguir uma política nacional pouco dócil aos interesses ocidentais, suscitara a raiva de uns e a cobiça de outros. Acabou posto a ferro-e-fogo, sujeito a uma guerra que se pretendia cirúrgica. 

Corria o ano de 2011 e esperava-se navegar à bolina dos ventos de mudança das Primaveras Árabes, capazes de derrubar ditadores bem implantados. A portentosa indústria de armamento (onde os ocidentais são líderes do mercado) regozijou com a guerra. Rejubilou também um (em boa verdade, vários) membro da NATO, que assim se lançava numa aventura expansionista para reerguer parte do império otomano, inaceitável em condições de normalidade. Por último, foi fácil arregimentar soldados a preço de saldo entre os múltiplos núcleos de fanáticos islâmicos, ávidos de impor a sua variante religiosa (há dezenas e combatem-se entre si) e castigar um país, como a Síria, que autoriza a coexistência de quase todos os credos religiosos. 

Daquela guerra por procuração sairia um país dilacerado, depois fácil de retalhar a bel prazer de algumas potências estrangeiras. Mas os planos parecem ter saído de controle, pois a derrota (para posterior repartição do território) deixou de estar garantida. O novo cenário até reforçou alianças malquistas ao Ocidente, envolvendo o Irão e, pior, Putin, que encontrara pretexto para se estrear em novas regiões. Já saíra dos planos as muitas hesitações dos americanos, no tempo de Obama (Trump deu-lhes continuidade), que terá cedido a contragosto àquele aventureirismo bélico, quando preferia concentrar energias no Pacífico, retirando-se de outras zonas. Ficou célebre a sua recusa de «boots on the ground» (à parte da assessoria técnica a militares curdos), que suscitou uma saraivada de críticas de muitos media europeus. Também foi imprevista a resistência das tropas e da população sírias, mais fiéis a Assad do que se esperava. Porém, a ‘cereja no bolo’ terá sido o envolvimento directo do Irão (muito conhecedor daqueles meandros), a que se seguiram as temíveis «boots on the ground» do próprio Exército Vermelho, a inverterem as sortes do conflito a favor do líder de Damasco. A um mês e pouco da eleição de Trump, era a resposta hábil de Putin à provocação de Obama, que declarara que a Rússia ficara reduzida a potência regional. Regional, mas capaz de alargar o seu espaço de influência além-fronteiras, recuperando peso por outra via. Ora, um Médio Oriente menos americano e ainda com peso geoestratégico, oferecia uma oportunidade de ouro ao Kremlin para aumentar o poder militar e geopolítico. 

BBC a 1.Out.2015, referindo-se ao primeiro raide aéreo russo em território sírio, a 30 de Set.: «Russian warplanes have carried out their first air strikes on opponents of President Bashar al-Assad in Syria, adding a new dimension to the country's four-year civil war. Russia says it is targeting Islamic State and 'other terrorists'» 

Como última consequência deste conflito alegadamente justiceiro: a internacionalização dos grupos islâmicos radicais, agora armados até aos dentes, colocou o Ocidente à mercê dos seus actos suicidários, para se vingarem das constantes interferências dos governos ocidentais noutras geografias, recorrentemente no Próximo e no Médio Oriente. A ferocidade daqueles ataques terroristas para desestabilização da pax europeia tem mantido uma hierarquia nos alvos, sendo os preferidos (até agora) os civis, em geral e os símbolos cristãos, em particular, para o apagamento das marcas indeléveis de uma fé e de uma mundividência – onde «não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher» (Gal.3,28), exactamente ao contrário da práxis daqueles fanáticos – que abominam e se propõem erradicar. 

Após 10 anos de guerra na Síria, a instabilidade e a insegurança globais dispararam, os povos da região empobreceram dramaticamente, sendo um totoloto chegarem vivos ao dia seguinte, as multidões de deslocados criam novos problemas aos locais de destino impreparados para absorver tanta gente em necessidade extrema. 

Nesta longa guerra, o que mais dói ao povo sírio não são os morteiros dos terroristas cruéis apoiados por mercenários sem escrúpulos, nem sequer a destruição, mas o silêncio férreo a que o Ocidente os votou, lembrando-os só pelos “indesejáveis” fluxos de refugiados. Um silêncio de censura, segundo narra um local, pois os factos sobre aquela guerra incomodam inúmeros VIPs e não interessam a quase ninguém. Isto equivale a mantê-los sob quarentena forçada, desde há uma década! Ao estilo de S.Paulo, foi a partir de uma capital dilacerada pelas bombas mas com uma réstia de humanidade e de esperança, que um franciscano escreveu uma carta aos Ocidentais, que vivem apavorados pelo coronavírus:

«Caríssimos amigos, escrevo-vos da prisão» 

«Eis que chega o tempo quaresmal, que nos ajuda à conversão através da penitência [tempo em que os cristãos são] chamados a estar próximos de quem sofre, dos marginalizados com quem o Senhor Jesus se identificou. 

Os presos são expressamente mencionados na parábola do juízo final, em Mateus 25,31-46: “Estava na prisão e fostes visitar-me”. Aqui na prisão não estou só, mas partilho esta reclusão com todos os meus compatriotas. Nós, sírios, com efeito, vivemos desde 2011 numa grande prisão, imposta pelas políticas ocidentais, pelos países que se arrogam o papel de defensores dos direitos civis, mas colocam sob embargo uma nação inteira... 

E sabeis porque estamos nesta prisão: Porque queremos defender o nosso belíssimo país dos terroristas, que quiseram transformar a Síria num estado obscurantista.

Hoje, os grandes meios de informação gostam de dirigir os holofotes para a história de uma menina morta de frio, ou para uma família obrigada a fugir dos bombardeamentos, mas esses mesmos meios não vos falam dos milhões de sírios que sofrem o frio por falta de gasóleo, que nem sempre podem desfrutar de uma refeição quente por falta de gás de cozinha. 

Não vos falam dos alunos que não podem estudar depois do pôr-do-sol por falta de corrente elétrica, não vos falam dos idosos abandonados porque os seus filhos tiveram de emigrar... 

Não vos falam do alto custo de vida, porque a libra síria caiu, não vos falam dos jovens soldados que combatem o terrorismo em temperaturas abaixo de zero, e não sabem se o conseguirão fazê-lo, não vos falam dos doentes que não podem ter tratamentos dignos porque os terroristas “moderados” destruíram a maior parte dos hospitais, e porque os hospitais que funcionam não conseguem reparar os equipamentos por causa do embargo…

E, seguramente, não vos falarão dos bombardeamentos que mataram um jovem universitário há dois dias [em Damasco], nem dos discursos abertamente hostis de Erdogan, que decidiu introduzir nas escolas primárias a nostalgia otomana de reconquista das terras limítrofes, designadamente a Síria. 

Mas os grandes meios de informação também não vos falarão da alegria dos habitantes de Aleppo desde que o exército nacional conseguiu libertar os subúrbios oeste de Aleppo, a partir dos quais choviam os morteiros sobre civis. 

Nunca vos falarão da alegria de todos os sírios pela reabertura da autoestrada Damasco-Aleppo e da reabertura do aeroporto internacional de Aleppo, que deu esperança de uma possível retoma económica…

Não vos falarão do anúncio da reparação do caminho de ferro entre a capital síria e a capital industrial (Aleppo), nem da possibilidade de viajar de comboio após nove anos de guerra… 

Por isso vos digo que estamos na prisão… e as nossas notícias, as verdadeiras, são escassamente difundidas. 

Desta prisão ouvimos notícias tristes e preocupantes sobre o coronavírus, que invade o mundo (…), rezamos por vós, e às vezes, querendo desdramatizar, dizemos que desta vez é uma vantagem o estar na “prisão”, porque pelo menos esse maldito vírus não consegue facilmente penetrar os muros da nossa nação. 

Da “prisão” desejamos-vos todo o bem, e um bom caminho de Quaresma… Não tenhais medo, Jesus, com a sua cruz, venceu o sofrimento, o pecado e a morte. Recordai-vos de nós na vossa caridade quaresmal.» 

Frei Bahjat Elia Karakach –  guardião do convento de Bab Thouma, na capital síria
 In Famiglia Cristiana ; Trad.: Rui Jorge Martins. 9 de Março de 2020

Independentemente das estranhas causas desta guerra algo artificial e sumamente interesseira – com raízes na clássica dupla inveja & avidez, camuflada por uma narrativa à base de meias-verdades e boa dose de fake news  – é um mero tributo aos factos dar voz a quem raras vezes é ouvido e levado a sério. A última palavra cabe aos poetas, aplica-se em pleno à Síria: «Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar / […] Relatórios da fome / O caminho da injustiça / A linguagem do terror /  A bomba de Hiroshima /  Vergonha de nós todos / Reduziu a cinzas /  A carne das crianças /  DÁfrica e Vietname /  Sobe a lamentação /  Dos povos destruídos / Dos povos destroçados / Nada pode apagar / O concerto dos gritos /  O nosso tempo é / Pecado organizado.»  [Sophia in «Cantata de paz»].

Maria Zarco
(a  preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

1 comentário:

  1. MZ,
    trabalho difícil, este escrito. Difícil mesmo, pois feito com honestidade.
    A mensagem de Frei Bahjat Elia Karakach é essencial neste Gin.
    ao

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