26 maio 2020

Da felicidade e do Céu

Um dia destes falava com alguém sobre terceira pessoa, tendo eu afirmado: Deus queira que seja feliz. Do lado de lá do telefone a resposta veio rápida e assertiva: Deus queira que vá para o Céu; se conseguir ser feliz antes ainda melhor. Hoje, no meu passeio muito matinal no paredão (com muito mais gente do que é costume) dei por mim a pensar na afirmação e na resposta.

Usei muitas vezes o argumento do Céu como objectivo máximo na vida de um cristão. Afinal, ir para o Céu é ir para Céu - e isso é sempre bom; ser-se feliz, pelo contrário, pode ser um objectivo egoísta, porque podemos atingir a felicidade à custa da infelicidade dos outros. Nesse sentido, a resposta que me deram está correcta: Deus queira que vá para o Céu; se conseguir ser feliz antes ainda melhor. 

Ora, antes do mais falamos de momentos diferentes; se eu entendi correctamente a frase que me foi dita, ela contém uma espécie de contradição em termos. Vamos para o Céu quando morrermos, e só quando lá chegarmos é que sabemos que estamos no Céu. Também pode acontecer - como eu acredito que acontece - que para o Céu vão todos, menos aqueles que o rejeitam até ao fim, nunca se arrependendo de nada que possam ter feito de mal. Mesmo assim, se pensarmos que Deus não é senão Amor, não estou certo de que esses não vão também para o Céu. Então, se esta teoria assente na fé for válida, não vale a pena estar a desejar algo que sabemos que de facto nos vai acontecer. Na verdade, até o bom ladrão se arrependeu no último momento, chegando ao Paraíso nesse mesmo dia.

Por outro lado, se bem que o Céu se ganhe na Terra, não é na Terra que vamos para o Céu - e essa é uma decisão que não nos compete tomar, apenas podemos querer ser merecedores dela.  O que podemos então desejar para a caminhada terrena de alguém? Que vá para determinado sítio quando morrer? Devemos então estabelecer um objectivo terreno, que tenhamos a possibilidade de atingir e que nos garanta o Céu? A felicidade pode ser um deles? Ou talvez seja mais correcto pretendermos que alguém deseje o Céu, não que vá para o Céu?

Socorro-me de duas citações:

De Aristóteles (in Ética a Nicómaco):

Parece ainda que todas as características procuradas na felicidade existem de acordo com o sentido estabelecido. Para uns é a excelência, para outros a sensatez, para outros ainda parece ser uma certa sabedoria, para outros, finalmente, todas estas actividades ou algumas delas em conexão com o prazer ou então, pelo menos, não sem o prazer. 

(...) 

O sentido fixado por nós concorda com aqueles que dizem que a felicidade é a excelência ou uma certa excelência.

Agora de Santo Agostinho (in Confissões):

Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que desinteressadamente te servem, cuja alegria és tu mesmo. E a vida feliz consiste em sentir alegria junto de ti, vinda de ti, graças a ti: esta é a vida feliz e não há outra.

Para obviar discussões talvez pudéssemos desejar, então, que esta pessoa de quem estávamos a falar levasse uma vida boa, que é diferente de levar uma boa vida - a ordem dos factores não é, de facto, arbitrária. Porém, lendo Aristóteles e Santo Agostinho - nascidos com um intervalo de 700 anos - acho que posso continuar a desejar que a dita pessoa seja feliz. Em bom rigor, se for esta a felicidade que ele procura, de certeza que vai para o Céu.

JdB

4 comentários:

  1. Gostei muito do que escreveu, aliás como sempre.
    Um beijo Zica.

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  2. Também gostei, tema difícil!

    Santo Agostinho toca no ponto.

    Abr
    fq

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  3. Obrigado fq. Santo Agostinho resolve o dilema. Sejamos felizes, como ele entendeu que deveríamos / poderíamos ser. O Céu segue-se com naturalidade.

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