09 junho 2020

Da pandemia como carrasco ou gerador de um certo tipo de relacionamento

Segundo João Miguel Tavares, numa conversa do Observador sobre novos espaços de trabalho (penso que na semana passada) se a palavra mais usada nos últimos tempos é pandemia, a segunda será teletrabalho. São essas as duas que interessam para este meu devaneio.

Dois pequenos episódios: 

(i) Estou na Igreja. Passa por mim uma pessoa de quem sou amigo; engraçada como é, diz-me a rir por detrás da máscara que lhe tapa uma faixa de rosto que vai do nariz até ao queixo: sou fulana... 

(ii) Estou num supermercado. Passa por mim um cavalheiro que eu não me parece saber quem é; traz uma máscara que lhe tapa uma faixa de rosto que vai do nariz até ao queixo. Acena e baixa a máscara para se identificar; embora não conheça o cavalheiro (posso estar enganado, contudo) baixo também a minha máscara. De facto, não nos conhecemos, mas só percebemos isso com a cara destapada

Não tenho histórias curiosas de teletrabalho, cujo modelo sigo quase exclusivamente ha 13 anos. O que sei, o que vou ouvindo por aí, é que o futuro da vida profissional das pessoas passará desejavelmente por um sistema misto: as pessoas vão ao emprego uns dias, trabalharão em casa outros. O terrível deste sistema, agravado com uma utilização generalizada da máscara em lugares públicos ou mais confinados, é que matará uma forma de romance que era determinante para um tipo de pessoas. Em bom rigor, o meu raciocínio poderia aplicar-se ao mundo universitário, com o misto de aulas à distância e aulas presenciais com máscara.

Conheci pessoas que casaram com colegas de faculdade; conheci pessoas que casaram com colegas de emprego; conheci pessoas cuja vida social passava quase exclusivamente pelos/as colegas de faculdade ou de emprego. Esse modelo de vida está em risco, e o governo deveria olhar para estas pessoas, não como um foco de dificuldades económicas, mas como um problema de saúde mental - ou como um caso de estudo a ser publicado nas revistas da especialidade. Pode ser tudo, o que dificulta a análise e a respectiva medida correctiva.

Na verdade, com o teletrabalho as pessoas ver-se-ão menos; com a obrigatoriedade da utilização da máscara as pessoas ver-se-ão ainda menos. Ora, não se vendo, resta-lhes apaixonarem-se (ou aproximarem-se socialmente) por aquilo que intuem uma da outra, por aquilo que vão descobrindo, pela beleza interior tão desvalorizada face aos atributos físicos. As pessoas apaixonar-se-ão também pela voz - ou pelo tacto. Mas fá-lo-ão intermitentemente, em função dos dias a que o patrão as manda ir trabalhar à empresa.

O Sr. Santos contínuo e a D. Adélia da Contabilidade, ambos empregados numa metalúrgica de Fernão Ferro? O Alberto (de Fornos de Algodres) e a Sandra (de Bencatel) ambos estudantes de Antropologia? A vida ser-lhes-á mais penosa, o encanto mútuo gerado pela proximidade profissional ou universitária mais difícil. Resta-lhes o zoom e uma máscara mais criativa. O que está por trás fica remetido para o exercício da imaginação e para as 2ªs, 3ªs e 6ªs quando cruzarem os olhos e imaginarem uns dentes.

JdB 

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