25 junho 2020

Moleskine desinteressante

Repito-vos que não sei de onde sois (Lc 13, 27)

Oiço este trecho na homilia de domingo passado. Seria assim que Deus se dirigira no paraíso aos que, praticantes da iniquidade, lá entrassem. Sussurro para quem está ao meu lado: será que Deus não conhece alguém que chegue ao Céu?  A pergunta será despropositada, mas por vezes estes pequenos raciocínios deixam-me a pensar: que pedagogia devo eu tirar deste trecho? Que se praticar a iniquidade vou para o céu mas o Criador me dirá (por duas vezes, como vem neste passo de Lucas) que não sabe de onde sou?

***

A morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade; eis porque nunca pergunto por quem dobram os sinos: é por mim. A frase de John Donne tem várias traduções e nem sequer sei se esta é a mais correcta. Foi a que me saltou de imediato no computador. 

Tenho pensado na morte de Pedro Lima, o actor que se suicidou no passado fim de semana. Entre jornais, revistas e televisões não vi nada de elevado. Apenas vi porcaria, exploração ad nauseam de uma tragédia. À cabeça da manada, para citar uns versos de fado, a CMTV (não sei se há, como vi escrito por aí, aproveitamento para um ataque da Cofina à TVI), à qual só falta referir o tamanho da faca, o local e preço de compra, a direcção do movimento com que o actor se golpeou várias vezes, a quantidade de sangue jorrado. Ler os comentários dos jornais é contemplar uma cloaca, para usar uma expressão que encontrei por aí. Entre a admiração bacoca pelo actor e a crítica mais feroz ao que ele fez, nada se aproveita. Não há um módico de pudor nem de respeito. Aliás, ler os comentários dos jornais é perceber a dimensão da descarga de bílis de parte substantiva da nossa população.

Tenho pena da mulher e dos filhos do actor; tenho pena do sofrimento dele, daquilo por que ele passou até chegar a este ponto. Mas não sei o que dizer da Ministra da Cultura que se referiu a ele como "emblemático protagonista" ou do Presidente da República que achou que ele, Pedro Lima, irradiava felicidade. Faz-nos pensar, não só num claro provincianismo que nos assola, mas no que as pessoas veem num actor de telenovela que sofria de depressão que o conduziu ao suicídio. Felicidade?

JdB

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