Quando, na primeira ou na segunda classe, a professora ensinou que cada pessoa tinha cinco sentidos, o Armando ficou confuso. Tinha o olfacto, que usava para encontrar o caminho até à cozinha, e também o paladar com que adivinhava o que era o almoço e o jantar. Tinha o tacto, com que descobria a forma das mesas e dos sofás da sala. A audição também lá estava, para ouvir a campainha no recreio.
Mas o último dos cinco sentidos sempre lhe faltou. Desde o dia em que nasceu até ao fim da sua vida. O que para os outros eram conceitos tão banais como as cores, ou como a lua e as estrelas, para ele eram exercícios de imaginação com que se entretinha quando se deitava de noite na cama.
Os pais deram-lhe o nome Armando, em honra do astro do futebol argentino. Quando souberam da sua condição resignaram-se com o facto de este sonho nunca se vir a concretizar, e culparam o destino por tamanha desfeita. Mas esse destino que tanto amaldiçoaram trocou-lhes as voltas, e o facto do Armando não ver não o impediu de vir a chutar uma bola.
Quando a campainha tocava para o recreio, todos os rapazes corriam para o campo de futebol. O Armando sentava-se na bancada a ouvir os gritos e o barulho da bola a raspar no alcatrão e a imaginar o que se estaria a passar.
E, enquanto alguns eram os últimos a ser escolhidos para as equipas, por culpa da falta de jeito, o Armando não chegava sequer a ser escolhido, por culpa da falta de visão. Para que quero eu um cego na minha equipa? Nem sequer serve para guarda-redes, não consegue ver os chutos! E a todos os intervalos a história repetia-se. Os rapazes corriam para o campo, gritavam uns com os outros, esfolavam os joelhos no chão atrás de uma bola, e o Armando ia andando devagarinho para a bancada.
Até ao dia em que, quando passava ao lado do campo para ir para casa, um colega de turma o chamou. Oh Armando!, anda cá dar um chuto na bola, para veres como é. E o Armando foi. Sempre tivera curiosidade em saber como seria jogar futebol, mas faltara-lhe a coragem para pedir. Nunca o disse, mas concordava com o que diziam dele. Se não conseguia ver a bola a vir, como é que podia jogar?
O colega pôs a bola à frente do seu pé esquerdo e disse-lhe que a baliza estava mesmo à sua frente. Era só rematar com a ponta do pé, a direito. Primeiro chuto, primeiro golo. Segundo chuto, segundo golo. E a partir daí, todos os remates que fazia iam invariavelmente até à baliza.
E todos os dias, depois das aulas e antes de ir para casa, ia treinar para o campo. Pousavam a bola no chão, diziam-lhe onde estava a baliza, e o Armando puxava o pé atrás. Chuto, golo.
Depois de tanto treino, passou a ser escolhido para as equipas do intervalo. Enquanto a bola estava em movimento, estava quietinho no seu canto, para não chocarem com ele. Mas, quando havia um pénalti ou um livre ao pé da baliza, já se sabia quem ia marcar. Diziam-lhe ao ouvido onde estava a baliza, o guarda-redes e a barreira, e a grande maioria das vezes a bola ia parar lá dentro.
O facto de ser cego não o deixava ver a bola chegar, mas quando a bola estava parada este problema já não se punha. E foi assim que o Armando, mesmo cego, se tornou no Maradona daquela escola.
SdB (III)
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* publicado originalmente em 13.07.2010
História comovente, bem ilustrativa da surpresa que é a Vida, a poder tocar de forma espantosa cada vida. Obg, MZ
ResponderEliminarAdorei!
ResponderEliminarVenham mais!