20 julho 2020

Da relação entre a Madeira e a Cristina Ferreira


Funchal, Estrada Monumental (18 de Julho de 2020, pela hora de almoço)
Funchal, Estrada Monumental (18 de Julho de 2020, pelas 22.30 horas)

A vantagem de termos um estabelecimento como o Adeus, até ao meu regresso... reside no facto de podermos dar-nos ao luxo dos maiores dislates intelectuais. Visto e lido por uma pequena comunidade persistente de fiéis seguidores (cuja motivação está para além do explicável racionalmente), aqui posso escrever sobre cebolas roxas, mas posso escrever sobre a relação que há entre essas mesmas cebolas roxas e o principado do Mónaco.

Na minha mente estava latente a ideia de ir escrevendo sobre a Madeira, já que me encontro no Funchal; porém, o bombardeamento de que eu e todos os portugueses - pelo menos os menos interessados neste tema - fomos vítimas com as notícias da mudança da Cristina Ferreira da SIC para a TVI levam-me a escrever sobre a Madeira (a tal "cebola roxa") mas na relação com a Cristina Ferreira (o tal "principado do Mónaco", embora em versão menos ruidosa). 




Metaforicamente, as fotografia do Reid's Palace Hotel e do letreiro pendurado numa porta voltada para a rua são legendas perfeitas para o estado da Madeira: está tudo fechado. Metaforicamente, as fotografias da Estrada Monumental, tiradas a um sábado de Julho, são legendas perfeitas para o estado da Madeira: está tudo vazio.

Anda-se pelas ruas, pelo Mercado dos Lavradores, por zonas de restaurantes ou de lojas e tudo se resume a isto: o que não está fechado está vazio. A um sábado à noite vimos restaurantes com uma ou duas mesas ocupadas, outros sem ninguém; muitos - das mais diferentes categorias - fechados, sem vislumbre, talvez, de reabertura. Há hotéis fechados ou semi-vazios. Num deles, numa fiada grande de varandas deitadas para o mar, só havia luz num quarto... Numa zona como a Madeira (ou como o Algarve, noutra proporção) a falta de turistas não é um prejuízo - será uma tragédia. 

***

O fim de semana português foi dedicado a Cristina Ferreira. O Observador, cujo jornal sigo, fez uma cobertura ampla e, diria eu, exagerada. Em boa verdade, só nos faltou saber a cor da roupa interior da jornalista aquando da rescisão do contrato com a SIC, já que fomos sabendo tudo de hora a hora. A transferência não foi uma notícia: foi A notícia. Dos montantes envolvidos só sei o que a SIC pede de indemnização: 4 milhões de euros, que a jornalista e a TVI pagarão, seguramente, em partes proporcionalmente justas, se os tribunais derem razão aos queixosos.

Passo da impressão pessoal para o mais forte lugar-comum: nada disto me preocuparia muito numa empresa privada, onde a obscenidade dos salários e dos valores de transferências não me afecta. Ora, acontece (como foi salientado publicamente) que a TVI recebeu uma verba para compensar perdas de publicidade derivadas da pandemia. E nesse sentido, sim, a gestão dos dinheiros da TVI já me afecta os bolsos. Mais do que dizer-me muito, Cristina Ferreira grita-me muito; fora isso, será uma boa profissional, seguramente uma pessoa inteligente porque chegou a estes níveis de popularidade, mesmo que isso revele alguma coisa do povo português - ou da espécie humana. 

A televisão e o futebol ombreiam, de certa forma, numa obscenidade de ordenados. Veja-se os valores envolvidos na transferência de Jorge Jesus para o Benfica (desmemoriado que sou para algumas coisas, não sei se o clube da Luz se tem candidatado a apoios estatais...).  Por esse Portugal fora, médicos e profissionais de saúde ganham uma miséria. Na outra ponta do espectro, há jornalistas ou entertainers - ou Jorge Jesus, que também entretém... - a ganhar milhões, pagos por patrões que pediram apoio ao Estado para fazer face a dificuldades. Um médico cura vidas; Cristina Ferreira (com todos os méritos profissionais) alegra vidas. 

Uma certa ética está acima da lei ou das lógicas de mercado ou de facturação de empresas privadas. A diferença entre os ordenados de jornalistas, de treinadores de futebol e de médicos (ou de outros profissionais de saúde) não configura um incumprimento legal. Não há nada na lei que impeça o Estado de pagar 1.800€ a um médico e um clube de futebol (ou uma estação de televisão) pagar cem vezes mais a um profissional da bola ou do pequeno ecrã. Talvez haja, apenas, uma distorção entre valor e valores

Talvez não possa comparar-se uma "cebola roxa" (os números do drama humano se o Verão da Madeira, ou de outros pontos do país, for isto que vi nestes últimos dias) com o "principado do Mónaco" (materializado pelos ordenados de Jorge Jesus e Cristina Ferreira); a vantagem deste estabelecimento é que aqui pode-se...

JdB  


1 comentário:

  1. "...distorção entre valor e valores." É isso mesmo! Aliás, a sociedade em geral peca, hoje em dia, por aplicar quotidianamente a dita...

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