08 julho 2020

Texto e música dos dias que correm

David Bowie e o domingo: Voltar a ler e ouvir em tempo de pandemia

Durante o bloqueio causado pelo coronavírus, recebi um “e-mail” no qual uma estudante me escrevia do isolamento a que foi obrigada, acolhido como «privação da felicidade». Preencheu esse vazio de sentido com a leitura de “A peste”, de Albert Camus, e escutou algumas músicas sobre a quarentena. Na leitura assinala aquilo com que a realidade a confrontou, motivando-a a voltar a pensar nas razões por que vive. «As minhas convicções são sólidas e fundadas na verdade, ou ilusórias», interrogava-se. «Pergunto-me se Deus entra nos meus desejos, e se alguma vez me dei conta dele, e porque é que só agora o penso.» Esboça um pensamento sobre a religião e o ambiente à volta.

No longo elenco de discos escutados pela jovem comparecem Amy Winehouse e Bob Marley, lê poesia de Jim Morrison. Há a tristeza dominical de “Blue sunday”, dos Doors, a inquietação de “Sunday morning”, dos Velvet Underground, o isolamento nos Sonic Youth, a marginalização em John Lennon, o surrealismo religioso de Kayne West. Uma macedónia de sentimentos contrastantes que a perturbam.

Procuro compreender o seu ponto de vista e buscar nos seus livros e discos um ponto de contacto. O romance de Camus narra a desencarnação das relações socais, a frágil recordação de um rosto amado que desgasta as personagens numa cidade fechada e vergada pela peste. Protagonistas que fazem o seu dever, obrigados a fazer o bem sem heroísmos. É a alienação presente em David Bowie, vem-me à mente a sua discografia enquanto tento decifrar os textos indicados na mensagem.

Tenho uma dor semelhante à jovem estudante, também eu perdi o gosto da festa. Em tempo de pandemia, a santa missa celebrada sem o povo fez-me experimentar um pão de vida diferente, uma experiência difícil de descrever. Um pároco obrigado a estar longe fisicamente dos fiéis é uma contradição. Tentei, ainda assim, não fugir de uma realidade desconhecida e de vislumbrar uma Presença naquele deserto de relações.

À música de David Bowie cabe a tarefa de oferecer uma chave de leitura do tempo presente e apontar um horizonte de esperança à estudante. Em Bowie encontrei sempre uma resposta. As suas canções poderão reavivar a recordação dos domingos vividos em família e na igreja. Bowie, com efeito, escreve sobre o domingo, um tempo em que tudo se recria e se destrói. No seu pensamento, o domingo é entendido de maneira ambivalente. Ele que rezou o Pai-nosso no palco do estádio Wembley, em Londres, no concerto de 1992 em honra do líder dos Queen, Freddie Mercury. Sobre essa ocasião, declarou: «Rezar naquele palco o Pai-nosso pareceu-me um gesto natural. Uma invocação para me reencontrar a mim próprio».

As suas canções têm uma estrutura semelhante à oração clássica, e como tal – declarou Bowie – podem ser consideradas. Não é ousadia achega-las aos salmos de lamentação, porque o apelo dolente a Deus é audível nos textos de Bowie. Uma canção sobre todas é “Word on a wing”, na qual canta sobre o encontro com o Senhor e sobre a necessidade de não mudar, apesar de Deus ter penetrado intensamente na sua vida: «Senhor, ajoelho-me e ofereço-te a minha palavra sobre uma asa. Estou a tentar muito encaixar no teu esquema das coisas».

Em “Sunday” há um combate corpo a corpo com Deus. Bowie está à deriva enquanto procura uma luz e invoca o Senhor do domingo, dia de festa em que seria preciso ressurgir em vez de morrer. A passagem necessária pela paixão e morte não é aceite. Essa morte do desejo que se lê entre as linhas da carta da estudante do secundário. O domingo e Deus estão presentes no texto de “Julie”, em que há nuvens escuras no céu e um amor não correspondido. O sentido de culpa segue-o em “Can’t help thinking about me”, onde emerge a nostalgia dos domingos em que se ia à igreja, esse dia em que cessava todo o medo: «Lembras-te quando íamos à igreja ao domingo? Ficava acordado toda a noite, aterrorizado pelo pensamento da escola na segunda-feira. Quero ser de novo criança e sentir-me seguro». “The pretty things are going to hell” torna-se motivo para interrogar-se sobre o que é eterno e o que é condenado. Quem descobrir, em quem acreditar e a quem dar ouvidos num dia de domingo? Talvez seja esta a experiência dos jovens de hoje, por vezes perdidos, mas sedentos de verdade. Não morre a esperança de encontrar o amor de domingo em “Rubber band”, essa mesma paixão que nasce ao domingo em “Love you till tuesday”.

Segundo David Bowie, nasce-se ou morre-se no dia de domingo. Quem sabe de que maneira a estudante e os seus amigos viverão os próximos domingos… saberão habitar esta nova realidade, ou tornar-se-ão paranoicos? Terão famílias capazes de os fazer sentir-se amados? Haverá comunidades cristãs capazes de saciar a sua fome de verdade?

Vem em meu auxílio uma outra canção de David Bowie, “A better future”. Anoto alguns versos na resposta à jovem liceal. Uma oração atormentada de Bowie ao Senhor por um amanhã melhor: «Por favor [Deus], não despedaces este mundo. Por favor, leva este medo sob o qual estamos. Peço um futuro melhor, ou poderei deixar de te querer. Peço-te, assegura-te que teremos amanhã. Toda esta dor, toda esta tristeza, quero um futuro melhor. Ou poderei deixar de precisar de ti». Faixa colocada na “playlist” e enviada como oração contra o pavor que paralisa, juntamente com versos do Salmo 72: «Ele libertará o pobre que grita e o miserável que não encontra ajuda, terá piedade do fraco e do pobre, e salvará a vida das suas misérias».



Massimo Granieri
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 06.07.2020

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