01 julho 2020

Vai um gin do Peter’s ?

VÉUS DE PEDRA E TRANSPARENTES… SEM ALQUIMIA  

A qualidade da escultura exposta na Capela de Sansevero, em Nápoles, alimentou lendas de alquimia e druidas, por se considerar impossível atingir o efeito de transparência no véu que cobre o corpo do Crucificado.  Correu que o mecenas da figura daquele «Cristo Velato» – Raimondo di Sangro – era alquimista e teria passado ao escultor o segredo da transubstanciação de tecido em pedra, através de processos químicos. Como se se tratasse do simples recurso a um linho leve, cabendo depois o mérito do resultado a uma receita prodigiosa. Por azar, o truque teria morrido com os sábios de setecentos, pelo que não poderia repetir-se a façanha… nem comprová-la.  



O que os factos sustentam é a intervenção inicial do grande escultor Antonio Corradini (1688-1752), a quem a obra foi adjudicada. Começou por conceber um modelo em barro, mas morreu antes de conseguir transpô-lo para pedra. Por isso, o trabalho posterior sobre um bloco único de mármore foi executado por Giuseppe Sammartino, que o concluiu em 1753. Tornou-se, assim, numa obra-prima a quatro mãos, num crescendo invulgar de virtuosismo e sentido artístico. Maravilhou o célebre mestre do neoclássico Antonio Canova (1757-1822), que a tentou comprar, em vão. Afirmou mesmo que estaria disposto a oferecer 10 anos de vida – sendo que a longevidade, à época, rondava os 33 anos (*) (embora Canova tenha dobrado a média) – para ter produzido um tal morto envolto num manto que desliza e se enovela em infinitas pregas. 

A movimentação exuberante daquele véu vaporoso, num frenesim que a menor brisa poderia agitar, transmite um irónico sopro de vitalidade à figura inerte que envolve, prefigurando a etapa que antecede uma nova vida inaugurada pela Ressurreição. A agitação do panejamento faz jus ao título misterioso da escultura – o «Cristo (ainda) Velado». Encontra-se velado ou encoberto num estádio intermédio de morte passageira, onde já irrompem sinais de vida em potência, pois nada se contrapõe mais à fixidez do cadáver do que a mais ínfima possibilidade de se mover. Assim, o torvelinho enérgico formado pelo véu concentra a mensagem-mor do conjunto, evocando a iminência da hora de o Crucificado se erguer e reduzir a morte a uma breve passagem.  






Cem anos depois, outro véu em pedra impôs-se, ainda que sem a mestria do de Corradini e Sammartino. Igualmente de autoria italiana, enquadra-se na moda do século XIX das esculturas encobertas por organzas, voiles, tules e tramas de renda, naturalmente num despique apenas comportável entre os melhores ateliers, pela dificuldade da proeza. Nesse boom tridimensional, sobressai a «Virgem Velada» de Giovanni Strazza (1818-1875). Tal como a figura de Cristo, também a imagem da Mãe é esculpida a partir de um mono bloco. Em 1856, a peça em mármore de Carrara rumou até ao Canadá para ser entregue ao Bispo de Terra Nova e Labrador, John Thomas Mullock, que terá exclamado ao vê-la: «it is a perfect gem of art». Em 1862, foi transferida do Paço Episcopal para o Convento ao lado, pertencente às Irmãs da Apresentação. 



Para lá dos italianos na pole position da escultura – como Michelangelo, Bernini, Canova, della Robbia (e há dois) Verrochio, etc.– é impressionante confirmar a quantidade de outros menos conhecidos pela carreira, mas com peças isoladas extraordinárias. Se cada pessoa é insubstituível, talvez os artistas sejam dos que melhor evidenciam essa marca individual única e imprescindível de cada ser humano na História da humanidade. A aplicação do princípio a uma escala nacional exemplifica bem o seu alcance: o que seria do património artístico mundial sem o contributo de Itália?  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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 (*)  Segundo o estudo da OCDE «How was life? — Global Well-Being since 1820», que foi publicado em Outubro de 2014. Os resultados daquele relatório, que integrou uma equipa de historiadores de economia (sobretudo alemães e holandeses), são impressionantes e não deixam dúvidas sobre os avanços nos últimos 2 séculos: a longevidade aumentou dos 33 anos, em 1820 para os 80, em 2000; o número de habitantes do planeta multiplicou-se por sete; a população cresceu 8cm em altura; a percentagem de alfabetizadas saltou de 20% para 80%; o número dos países democráticos, que não chegava a uma dezena, disparou consideravelmente.   
Para a consulta aos dados mais capilares sobre cada país europeu recomenda-se o portal CLIO-INFRA.EU.  Aí se percebe a aproximação de Portugal aos parâmetros dos outros parceiros UE, (só) a partir do segundo quartel do século XX. Por exemplo, em 1920, os portugueses viviam em média até aos 35-36 anos, menos 23 anos do que os noruegueses (os segundos com maior longevidade, a nível mundial). Hoje, essa diferença esbateu-se para 2 anos.

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