29 julho 2020

Vai um gin do Peter’s ?

NESTAS FÉRIAS, DÊ ATENÇÃO À VIDA

Há uma década, veio de Roma um par de conselhos sobre a riqueza muitas vezes subestimada das férias. Para lá do puro e legítimo descanso, merece ser oportunidade de renovação lenta, profunda, como no restauro minucioso de uma peça de arte, que sairá rejuvenescida do atelier ao recuperar o colorido e a luminosidade originais. Em Portugal, temos por onde arejar entre as nortadas frescas ou o cheiro intenso da maresia nas praias a Norte e os mergulhos na água lisa e quente do areal algarvio. Há para todos os gostos neste país marítimo, onde mesmo as praias fluviais abundam para gozarmos os dias solarengos sob o céu turquesa do Verão português.

A novidade dos conselhos está na premissa de que as férias têm enorme potencial para ser um momento fecundo, e não apenas a soma de pequenos prazeres fugazes pulverizados em mil variantes, o que lhes aumentaria a brevidade. Para ampliar o gozo das férias, etapa maravilhosa e insubstituível de cada ano, Bento XVI desfiou quatro dicas. Primeiro, recomendou a suspensão do corrupio das nossas agendas sobrecarregadas, para vivermos de modo novo a relação com os outros e com Deus. Depois, apontou à natureza, para saborearmos a sua beleza tranquila (em geral) e cultivarmos o dom de perscrutar os sons e a vida semi-escondida das paisagens naturais, interpretando a linguagem e os sinais sábios, mas subtilíssimos, da criação. Em terceiro, pensou nos viajantes e peregrinos, desafiando-os a aguçar a curiosidade através de um olhar inteligente e da abertura de coração a civilizações e a séculos longínquos. Antevendo as atribulações de um terceiro milénio inaugurado pelo ataque perverso ao Ocidente na derrocada violenta das Torres Gémeas, o Papa pediu uma oração pela humanidade nos monumentos-templos do itinerário cultural de quem viaje. Hoje, em ambiente mais tenso, num nível abertamente confrontacional, o pedido mantém actualidade. Por último, lançou uma proposta invulgar para pedirmos a Deus que nos liberte da carga desnecessária acumulada ao longo do ano, i.e., a maluquice (de facto, está para lá da mera tentação) de chegarmos a todo o lado e não perder nada. Assim elencou dicas simples para nos aproximarmos do sentido da Vida, da nossa vida, sugerindo que pedíssemos aos Céus um coração arguto para nos «essencializarmos». 

Num texto publicado, em português, no ano de 2007, Bento XVI aprofunda a reflexão em torno das férias, fazendo a apologia explícita da paragem, em alerta ao excesso de produtividade cultivado pela nossa civilização. Isto dito por um alemão, tem graça… O título é auto-explicativo, como curiosa é a necessidade de esclarecer que não pretende defender a preguiça, mas limpar o significado de termos desgastados e apoucados pelo mau uso, mudando a hierarquia das virtudes. No fundo, desfaz preconceitos e modas:

                                                                   
                                                                      «PODER DESCANSAR 

Os discípulos colocaram a Jesus o problema do stress e do descanso. Os discípulos regressavam da primeira missão, muito entusiasmados com a experiência e com os resultados obtidos. Não paravam de falar sobre os êxitos conseguidos. Com efeito, o movimento era tanto que nem tinham tempo para comer, com muitas pessoas à sua volta.

Talvez esperassem ouvir algum elogio por tanto zelo apostólico. Mas Jesus, em vez disso, convida-os a um lugar deserto, para estarem a sós e descansarem um pouco.

Creio que nos faz bem observar neste acontecimento a humanidade de Jesus. A sua acção não dizia só palavras de grandeza sublime, nem se afadigava ininterruptamente por atender todos os que vinham ao seu encontro. Consigo imaginar o seu rosto ao pronunciar estas palavras. Enquanto os apóstolos se esforçavam cheios de coragem e importância que até se esqueciam de comer, Jesus tira-os das nuvens. Venham descansar!  

Sente-se um humor silencioso, uma ironia amigável, com que Jesus os traz para terra firme. Justamente nesta humanidade de Jesus torna-se visível a divindade, torna-se perceptível como Deus é.  

A agitação de qualquer espécie, mesmo a agitação religiosa não condiz com a visão do homem do Novo Testamento. Sempre que pensamos que somos insubstituíveis; sempre que pensamos que o mundo e a Igreja dependem do nosso fazer, sobrestimamo-nos. 

Ser capaz de parar é um acto de autêntica humildade e de honradez criativa; reconhecer os nossos limites; dar espaço para respirar e para descansar como é próprio da criatura humana. 

Não desejo tecer louvores à preguiça, mas contribuir para a revisão do catálogo de virtudes, tal como se desenvolveu no mundo ocidental, onde trabalhar parece ser a única atitude digna. Olhar, contemplar, o recolhimento, o silêncio parecem inadmissíveis, ou pelo menos precisam de uma explicação. Assim se atrofiam algumas faculdades essenciais do ser humano. 

O nosso frenesim à volta dos tempos livres, mostra que é assim. Muitas vezes isso significa apenas uma mudança de palco. Muitos não se sentiriam bem se não se envolvessem de novo num ambiente massificado e agitado, do qual, supostamente, desejavam fugir. Seria bom para nós, que continuamente vivemos num mundo artificial fabricado por nós, deixar tudo isso e procurarmos o contacto com a natureza em estado puro.

Desejaria mencionar um pequeno acontecimento que João Paulo II contou durante o retiro que pregou para Paulo VI, quando ainda era Cardeal. Falou duma conversa que teve com um cientista, um extraordinário investigador e um excelente homem, que lhe dizia: "Do ponto de vista da ciência, sou um ateu...". Mas o mesmo homem escrevia-lhe depois: "Cada vez que me encontro com a majestade da natureza, com as montanhas, sinto que Ele existe". 

Voltamos a afirmar que no mundo artificial fabricado por nós, Deus não aparece. Por isso, temos necessidade de sair da nossa agitação e procurar o ar da criação, para O podermos contactar e nos encontrarmos a nós mesmos.  

  In «Esplendor da Glória de Deus» - Card. J. Ratzinger,
p.161 na edição da Editorial Franciscana.

As férias de gosto atlântico, para a maioria, evocam a poesia aquática e solar de Sophia:
         
         «OS DIAS DE VERÃO

Os dias de verão vastos como um reino
Cintilantes de areia e maré lisa
Os quartos apuram seu fresco de penumbra
Irmão do lírio e da concha é o nosso corpo

Tempo é de repouso e festa
O instante é completo como um fruto
Irmão do universo é o nosso corpo

O destino torna-se próximo e legível
Enquanto no terraço fitamos o alto enigma familiar dos astros
Que em sua imóvel mobilidade nos conduzem

Como se em tudo aflorasse eternidade
 Justa é a forma do nosso corpo»


Sophia de Mello Breyner Andresen
in Obra Poética, Volume III


Por memórias pessoais, um repertório muito estival (embora vá bem todo o ano!) inclui «The Most Beautiful Girl» e este excerto de um concerto de Freddie Mercury. Que saudades de ambos! Na estreia de Prince em Portugal, a 15 de Agosto de 1993, brilhou em Alvalade para um público esfusiante, mas saudavelmente tranquilo. Nunca tinha ouvido um sistema de som tão sofisticado em concertos ao ar livre. Ainda havia boa música nos estádios de futebol! 




Amizade, leitura, natureza, incursões culturais e sabedoria para desacelerar a fundo são boas dicas para nos refrescarmos e voltarmos ao quotidiano com nova inspiração. Talvez o dom maior nos chegue pelos versos de Sophia ao confiar na possibilidade de em tudo poder aflorar Eternidade. Era impossível pedir mais ao tempo! BOAS FÉRIAS.

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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