Com algumas vantagens, a pandemia matou uma certa silly season... Dantes (e dantes, neste caso, são o verões pré-covid) chegava-se a esta altura e os jornais inventavam notícias, faziam inquéritos proustianos, revelavam as férias paradisíacas de pessoas cuja celebridade advinha da arte de representar nas novelas. Agora há sempre qualquer coisa, quanto mais não seja o vírus e temas associados: a estatística, as estratégias, o drama das mortes, a ligeireza com que a ministra parece olhar para os lares.
Leio nos jornais que em Espanha já não é permitido fumar na rua; reconheço que preferia saber o que é o amor para os actores jovens do que ler esta triste notícia. Devo informar que deixei de fumar em 1984; penso nunca ter-me tornado um ex-fumador maçador (a não ser, talvez, com os meus filhos, por motivos óbvios) embora me incomode o cheiro do cigarro muito perto e esteja certo da sua perigosidade para a saúde. Contudo, a proibição de fumar na rua incomoda-me, ainda que me incomodasse alguém na rua a fumar ao meu lado. O incómodo advém de uma sensação de imposição de um mundo higiénico, asséptico, vigiado, saudável por decreto e por economia de recursos sempre escassos.
Não nos iludamos: na tabela desta espécie de guildas a vigiar, a seguir a fumadores vem obesos,
(conheço gente com dois dedos de testa que acha que os obesos deveriam pagar mais impostos, por serem um factor de risco superior...)
vem obesos, dizia eu, por causa da noção de saúde decretada no seio de um qualquer ministério. Nesta onda de procura obsessiva da higienização da sociedade, os obesos têm uma vantagem clara sobre os judeus em tempos de nazismo: não carecem de estrela que os identifique. Um dia proibir-se-ão as refeições excessivamente calóricas (cada empregado de restaurante terá um mestrado em dietética e uma pós-graduação em delação) e os gordos serão olhados de soslaio na rua, como criminosos que fugiram ao controlo do Grande Irmão. A seguir aos obesos talvez venham os que bebem álcool, com os estabelecimentos do canal HORECA a inverterem a regra das boîtes do meu tempo: já não haverá consumo mínimo, mas consumo máximo. Ao servir-me, o empregado, de bandeja equilibrada e sorriso mascarado, alertar-me-á: tome atenção, que já é a segunda imperial... E mencionará a aplicação informática onde, em conjunto com as entradas e saídas de dinheiro, se reportam a uma entidade competente os consumos suspeitos.
Espero citar bem: em Grande Sertão: Veredas (livro de João Guimarães Rosa) há um personagem que afirma constantemente: viver é perigosíssimo. A mim talvez me ocorra dizer que viver é chatíssimo: é a máscara constante, a desinfecção permanente, o distanciamento social (que é apenas um distanciamento físico) a que se junta a proibição de fumar na rua, remetendo o acto de puxar de um cigarro para algo sórdido, obsceno, que deve fazer-se às escondidas num lupanar que foge ao fisco e aos bons costumes. Os governos e as boas mentes vão atacar os gordos, os que bebem muito, os excessivamente sedentários, os que parecem não produzir nada de útil, os que referem de forma pecaminosa a palavra "prazer" e não fustigam de imediato as costas arrependidas. Um dia mais tarde, e não faltará muito, morreremos todos saudáveis, sem excesso de colesterol, sem tensão alta nem gordura visceral - e sem deleites.
Felizmente já não se fabrica Português Suave sem filtro, ou eu não responderia por mim...
JdB
tem toda a razão. Viver é chatíssimo.!
ResponderEliminarÉ chato também levar com o fumo do vizinho, com a indelicadeza ou lamechice do bêbado, com a alarvice gastronómica e dietética do obeso. No entanto, para quem quer continuar, se optar por um comportamento transgénero, se pintar o corpo de preto e caminhar de bengala está safo, porque se for chamado á atenção, alega discriminação, racismo, xenofobia, homofobia e etc.
Só para rir um pouco, porque os tempos não estão para isso.
Caro JdB, é isto mesmo... morreremos todos saudáveis e sem deleites... e concordo! O Português Suave sem filtro era um óptimo cigarro!
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