26 agosto 2020

Vai um gin do Peter’s ?

PRESENTE À HUMANIDADE: UMA VACINA

Em 1961-63, um médico-cientista judeu, nascido na periferia do Império dos Czares (hoje integrada na Polónia) e cedo radicado no Novo Mundo, lançou a versão final da vacina contra a poliomielite, com total eficácia preventiva e de fácil administração, por via oral. Como resultado, em poucos anos, a solução de Albert Sabin (1906-1993) quase erradicou aquela terrível doença infantil –  denominada «paralisia infantil» nalgumas latitudes. As estatísticas oficiais contabilizam 122 países beneficiados e 2,5 mil milhões de crianças imunizadas. 

Sabin nascera Abram Saperstejn, mas simplificou o seu nome ao receber a cidadania norte-americana, em 1930, nove anos depois de ter desembarcado no porto de Nova Iorque. 

Sabin foi muitos vezes fotografado rodeado de crianças – primeiras beneficiárias da sua vacina.

Somou um segundo mérito à descoberta daquela vacina:  prescindir dos ganhos avultados que a patente lhe teria proporcionado, para assegurar um custo de comercialização acessível e assim facilitar a rápida disseminação interplanetária. Para chegar às quatro partidas do mundo, delegou a sua administração na Organização Mundial de Saúde, na altura, a instância com maior impacto internacional a nível sanitário. 

A resposta que repetia aos que o tentavam demover da loucura de não patentear a sua descoberta fulgurante era: este é o meu presente à humanidade! Contentou-se em viver dos honorários de académico e de investigador, em vez de enriquecer de supetão. 

A generosidade universal foi o fio condutor da sua vida: durante a Segunda Guerra, contribuiu para os avanços surpreendentes na imunização dos soldados contra as doenças contraídas na frente do Pacífico: febre de dengue e encefalite japonesa. Nos anos 50, já em plena Guerra Fria, formou equipa com cientistas russos para optimizar a vacina contra a pólio, numa cooperação além-fronteiras despojada de rivalidades. Em 1967, conseguiu estabelecer uma parceria científica entre os EUA e Cuba, apesar de os dois países não terem sequer relações diplomáticas. Notabilizou-se no combate às doenças virais, para mitigar os vários surtos epidemiológicos a que assistiu. Bateu-se ainda para que as suas descobertas tivessem utilidade imediata e amplitude global, começando pelos menos abonados. Defendia: «[research must] not remain something beautiful on the shelves of libraries or like the works of art hanging in museums, but that it be used, as far as possible, to solve basic and human problems» 

Monumento de homenagem na Universidade de Cincinatti, onde é imortalizado junto àqueles que mais protegeu.  

O tempo mostra que são sobretudo os pequenos gestos quotidianos, ínfimos, a sustentar e inspirar os grandes gestos, mesmo nas pessoas cujo carácter lhes confere inclinação natural para a magnanimidade. Não existem campeões por pura sorte, menos ainda por facilitismo, sem um percurso de crescimento intenso e persistente no rumo. No Império Romano, ditava a vox populi que ‘a sorte favorece os audazes’, intuindo-se que a sorte nunca é o ingrediente único do sucesso, precisando de vontade férrea. No fundo, a força propulsora estaria (e está) no protagonista, nos talentos que se esforçasse por desenvolver, fiel na catadupa das pequenas decisões de um dia-a-dia gerido com lucidez, pulso e adaptabilidade sábia aos solavancos da história. 

Mas, apesar dessa constância acumulada e reforçada no tempo, nenhuma boa escolha está garantida para ninguém. Há uma fragilidade imensa em cada deliberação, portanto também uma especial riqueza. Daí que a vacina oferecida por Sabin à humanidade seja igualmente um colosso de generosidade pela longa fidelidade à opção tomada em 1961, que nunca foi revertida. Isso permitiu um happy end clínico à escala mundial, ainda hoje útil para imunizar focos onde a doença persiste, em zonas remotas de África e da Ásia. 

Sabemos quanto este tempo clama por outra vacina. Sabemos que as melhorias nas telecomunicações agilizaram o trabalho em equipa. Sabemos que as actuais condições de mobilidade permitem uma distribuição relâmpago e em larga escala. Só não sabemos se o gesto maior de Sabin consegue inspirar a nossa geração. 

A história repete-se e, como sempre, voltarão a depender do coração (bem menos dos meios técnicos, onde estamos à frente) as decisões de maior alcance.   

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)


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