26 outubro 2020

Ainda da confiança

Podemos viver sem Fé (no sentido religioso da palavra) mas não podemos viver sem confiança, sob risco do edifício que nos sustenta ruir por excesso de tensão interna. Talvez fulana tenha sido agraciada com tudo - aquilo que é desejável e aquilo que é imprescindível -, e viva nesta certeza sossegada de que há caminhadas agrestes mas que, apesar disso, pode confiar no sentido das coisas, no mistério que é existir, nos olhos que não se desviam, na esperança de mais um emprego temporário, nas cruzes injustas que a levam ao Céu, no amor retribuído de um filho adulto a quem ela faz a barba com desvelo. 

Confiar é acreditar que na vida tudo tem uma solução. Confiar é saber que precisamos de procurar e construir o nosso caminho, mas que há alturas em que devemos fechar os olhos, descansar a alma e os braços, e acreditar que a nossa existência é um puzzle cujas peças tendem para o encaixe. É ter, tantas vezes, o olhar simples de uma criança que acha que ser pequeno e ter esperança no destino são coisas boas. Confiar, confiar, confiar. Estará aí a solução para muitos problemas?

***

Escrevi o texto acima (o original é mais extenso, retirei apenas estes parágrafo) há mais de sete anos, a propósito de uma pessoa que vivia com dificuldades financeiras e familiares sérias e de cuja boca nunca se ouvia um queixume. Enviei-o ontem a uma jovem mãe que, do outro lado do oceano, se confronta com uma filha com cancro, diagnosticada a um dia de fazer um ano.

(Curiosamente - e talvez este curiosamente seja uma palavra desadequada) nas últimas semanas / meses falei, troquei correspondência, com três mães que passam pelo mesmo.)

Vou sabendo notícias do Brasil, deste bebé numa situação desafiante. Vou trocando mensagens com a mãe, partilhando alguma coisa do que partilharam comigo há 19 anos: a ideia de que todos os dramas são suportáveis se fizermos deles uma história, a ideia de dar um sentido às coisas, a ideia de que, perante o drama, não podemos perguntar porquê, mas para quê. Talvez ela, a mãe desta criança, dona de uma força, de um optimismo e de uma confiança que me enternecem, já tenha percebido tudo, e a frase que ela me escreveu há uns dias, e se este for o propósito que Deus tem pra Camila, já valeu... (sendo que o propósito é o chamamento de pessoas, através do testemunho da mãe, para fazerem dádivas (penso que não será simplesmente sangue) a indicação clara de que algo se acendeu dentro daquela família.

Termino com um diálogo, tirado d' A Paixão de Shakespeare, a que recorro amiúde:

- Vai correr tudo bem...

- Mas como?

- Não sei, é um mistério. 


JdB

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