Ontem, por motivos que não vêm ao caso, citei as primeiras palavras do Amazing Grace, um hino tradicional protestante, com letra escrita pelo inglês John Newton e impresso pela primeira vez em 1779:
Amazing Grace, how sweet the sound
That saved a wretch like me
I once was lost but now am found
Was blind, but now I see
O tema da conversa não era o protestantismo, nem sequer a música [que aqui disponibilizo num versão gospel]. Falávamos de perdas, no seguimento de um texto que encontrei há algumas semanas num blogue e que enviei a várias pessoas:
Na sequência da discussão anterior, o que se pode opor à perda de lei (o nosso amor, um filho, um pai querido etc)? Tanto quanto sei hoje, misturando a experiência pessoal, a profissional e as leituras, só existe uma coisa. Uma única coisa.
Recapitulemos. As grandes perdas são histórias de destruição natural, como as de Sebald, Arrasam planos, esperanças, sim, mas também a vontade e o quotidiano. Um pouco como um avião que nos leva para um fuso horário desconhecido, num descampado onde até as nossas mãos não parecem nossas. Basta sentarmo-nos à mesa, à hora habitual, e olhar para a cadeira agora vazia: jet lag demoníaco.
A rotina é uma aliada. Como nas cidades destruídas, reerguer as paredes, limpar um poço, procurar batatas velhas. Ou seja, levantar cedo, ir trabalhar, suportar o trânsito. Não chega, essa pele fina de normalidade.
A rotina é uma aliada. Como nas cidades destruídas, reerguer as paredes, limpar um poço, procurar batatas velhas. Ou seja, levantar cedo, ir trabalhar, suportar o trânsito. Não chega, essa pele fina de normalidade.
A unica coisa com potencial equivalente à destruição é a criação. John só muito tarde percebe o que é o grande malogro - "não ser nada" - quando Mary morre finalmente. A Fera na Selva vale por uma enciclopédia de psicologia, porque mostra o axioma numa cronologia contrariada.
E o que é criar por oposição a perder? É pintar, escrever, ler, plantar, fazer um amigo, arranjar um amante, ter um filho, enfim, fazer de novo. Só assim a perda se integra e ocupa o seu lugar na ordem natural das coisas.
Na volta do correio vieram várias respostas, porque a conclusão do texto, como dizia um amigo, é uma resposta, não é a resposta. Ou, precisando, talvez seja parte da resposta. Com outro bom e estimado amigo a conversa rondou para outros ventos: pode aquilo que nos faz mal e que abandonamos ser considerado uma perda?
O tema das perdas levar-nos-ia longe e a mim fenece-me a sabedoria para o desenvolver de um ponto de vista mais genérico, sem enveredar por experiências próprias. Do que precisamos, na realidade, para superar as perdas? É a criação, como vem no texto reproduzido? É o sentido para a vida, como falava Viktor Frankl, o homem da logoterapia? É a fé? É uma vontade indómita e totalmente racional? Não sei. Já vivi o suficiente para saber que não sei, que cada caso é um caso, que os lutos (no sentido lato da da perda, e não forçosamente da morte) se fazem de forma diferente, porque cada um de nós é um mundo irrepetível.
A letra do hino - sobretudo a primeira quadra - é particularmente elucidativa e, diria mesmo, universal. De todas as perdas, mesmo os abismos que abandonamos, os Homens saem perdidos. Vencer a perda - qualquer que ela seja - é poder gritar bem alto, mesmo que seja para dentro de nós próprios, que a cegueira e os desnorte foram vencidos.
JdB
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* publicado originalmente em 25.07.2013
Obrigada, JdB, pela sua sabedoria inspiradora, percebendo-se que fala "como quem tem autoridade". Bjs, M.Zarco
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