Foi hoje, mas há 19 anos.
Cruzo-me com uns avós, escrevo a uma amiga que vive no Brasil, sei notícias de alguém que me foi apresentado virtualmente. Não se conhecem entre si, mas têm algo forte em comum: no seu círculo afectivo muito próximo (mais próximo seria difícil) há uma criança com cancro. Uma tem um ano, as outras talvez 6 ou 7 ou 8, por aí. São crianças, não mais do que isso, para quem a pandemia é uma espécie de sufoco em cima de uma angústia. Viram-se privadas de contactos sociais importantes, nos corredores do 7º piso do IPO de Lisboa (um oásis de humanidade e competência num deserto de aflições) foram proibidos as competições de triciclo, já não há crianças a fazerem corridas entre si - ou com o destino que lhes foi reservado.
São tempos difíceis. Nas Filipinas há crianças com tratamentos em risco, que o tufão dos últimos dias lhes levou telhado e chão e casa e conforto e talvez remédios. Em Beirute tenta-se a reconstrução possível, o retorno à vida normal em cima de escombros de hospitais onde outras crianças lutavam por um futuro mais normal. Noutros sítios - em África, talvez, em cada dez crianças diagnosticadas oito não festejam a cura, porque os remédios não chegam, porque as redes de transporte impedem o regresso aos tratamentos, porque não há diagnóstico precoce.
Vejo os avós na missa, não sei se a mãe que não conheço é crente, recebo do Brasil um texto de que retiro este parágrafo: Falamos tanto de fé inabalável, mas confesso que a minha balançou. E é muito difícil assumir isso. Que vergonha. Que tipo de fé era a minha, condicionada aos meus desejos? Anos e anos, rezando o Pai Nosso, repetindo sempre a frase “Que seja feita a tua vontade”, mas no primeiro momento em que não é a minha vontade eu me enfureci. Recuo 19 anos, aos meus pedidos simples mas que inverteriam o mundo: para que se cure, para que não sofra, para que não me azede com o mundo.
Nenhuma vida ensina mais do que outra, embora se diga que aprendemos mais com os nossos sofrimentos do que com os nossos contentamentos. Acontece que a pergunta que define um caminho e que assenta em perguntar para quê?, em vez de perguntar porquê? é aplicável a tudo, embora perguntemos porque nos acontece o mal e não porque nos acontece o bem. Mas o desafio também deveria ser este: o que faço com esta vida boa que tenho?
Hoje, mas há 19 anos (e para este efeito alguns meses), fui confrontado com uma janela por onde olhei para um mundo que não conhecia: o mundo das crianças com cancro de cá, o mundo do espanto, da aflição, das perguntas sem resposta, das procuras de sentido, dos desalentos e das proximidades afectivas. Hoje, 19 anos depois, vejo também o mundo das crianças com cancro de lá, o mundo das estatísticas desafiantes, dos abandonos dos tratamentos, da determinação dos médicos em inverter o rumo das coisas, dos tufões ou explosões que fazem tábua rasa de tudo.
À janela por onde espreito o mundo há sempre um anjo a indicar-me o caminho. Assim eu o saiba seguir.
J,
em nome de todos os que te amaram porque te viram e conheceram, e em nome de todos aqueles que te amaram sem nunca te terem conhecido
Cá estou eu para relembrar o anjo que me continua a iluminar nesta época especial de Natal...
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