24 novembro 2020

Da santidade (III)

A minha resposta ao artigo de NP publicado a 20 de Novembro e que pode ler-se aqui. Esta troca de correspondência data de Fevereiro de 2016, pelo que alguns factos aqui descritos devem ser lidos tendo isso em consideração.


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Meu caro NP,

 

Obrigado pelo pedagógico e informativo comentário ao meu texto no Adeus até ao meu regresso. Gostei de ler - aprendi e, porque pensei na resposta que havia de dar-lhe, reforcei argumentos para defender um ponto de vista algo diferente do seu.

 

Uma curtíssima nota biográfica para V. entender onde me situo na Igreja: sou católico (redundantemente chamado “praticante”). Durante muitos anos pertenci às Equipas de Nossa Senhora; na “minha “ paróquia fui / sou leitor, acólito, participante nos CPM, ministro extraordinário da comunhão com ida a lares e casas particulares, responsável pelo boletim dominical. As actividades, dentro destas, que abandonei, não têm a ver com discórdias ou zangas; apenas com caminhos particulares que decidi trilhar e que configuravam “incompatibilidades”. Mantive outras actividades. 

 

O Concílio Vaticano I definiu que o Papa goza de infalibilidade quando propõe para toda a Igreja "doutrina sobre fé e costumes”. Quase 100 anos depois, o Concílio Vaticano II completou este ensinamento ao declarar que a infalibilidade da Igreja "também reside no Corpo dos Bispos", sobretudo quando em Concílio Ecuménico. No entanto, o uso da infalibilidade aplica-se apenas às verdades relativas à Fé e à moral que são “divinamente reveladas” ou que estão em ligação íntima com a Revelação Divina. Talvez por isso, porque muitos aspectos sobre os quais o Papa se pronuncia ou age não se enquadram nestes dois aspectos, tenho visto os Papas que me são contemporâneos a serem criticados (e que não se leve esta palavra demasiado à letra) por posições tomadas: Paulo VI por receber os movimentos de libertação que combatiam Portugal; João Paulo II por fechar, (quase) por completo, a hipótese de ordenação das mulheres, Bento XVI por um (aparente) apoio a práticas litúrgicas pré-Vaticano II, Francisco por um eventual excesso de populismo. Nesse sentido, porque em muitos aspectos da sua vida o Papa não se pronuncia sobre a fé e a moral, não goza de assistência sobrenatural do Espírito Santo. É, portanto, falível. É homem. O mesmo se aplica ao Corpo dos Bispos. No que toca aos Papas, acredito piamente que todos eles são eleitos através de uma acção do Espírito Santo, pelo que todos eles têm uma importância no seu tempo que só o tempo nos mostrará. 

 

A igreja, em sentido lato, não é um corpo autónomo de pessoas permanentemente iluminadas e em constante acerto. É por isso que concordo com a Igreja (e uso a palavra “Igreja"no sentido da autoridade do Vaticano) quando esta faz a defesa intransigente da vida contra a eutanásia e o aborto e a pena de morte; é por isso que concordo com a igreja quando ela assenta a sua actividade no terreno, defendendo os mais pobres; é por isso que não concordo com a igreja quando ela se deixa enredar em bancos ambrosianos ou finanças de carácter duvidoso; é por isso que discordo da igreja quando não actua / actuou com a prontidão e justiça inequívocas nos casos de pedofilia; é por isso que discordo da igreja por não se aproximar da “visão” ortodoxa quanto aos segundos casamentos. E poderia seguir naquilo em que concordo e naquilo em que não concordo. Não falamos de dogmas, mas do posicionamento da Igreja neste ou naquele tema. Não tenho de concordar com tudo, tenho de respeitar tudo.    

 

Aliás, tenho para mim que a mãe igreja é santa, não por ser irrepreensível em tudo o que faz, mas por querer ser irrepreensível em tudo o que faz. A melhor definição de santo é ser um pecador que não desiste. A santidade da mãe igreja advém-lhe daí: não desistir de ser melhor. E é por isso, e não apesar disso, que eu amo a Igreja - imperfeita, combativa, justa, com falhas. 

 

Ao dizer “eu não concordo” não estou a tentar privilegiar o primado do “eu” em detrimento do “nós”. E nem estou a por-me em bicos dos pés, achando-me detentor de uma sabedoria que a Igreja não tem nos dois mil anos de existência. Estou a manifestar uma discordância porque não sou um fiel acrítico. Acredito ainda que a história da Igreja está carregada de gente que, ao seu nível, disse “discordo” - tendo, obviamente, um gabarito intelectual que eu não tenho. Só com estes “discordos” é que a igreja evolui, se adapta no que tem de adaptar, mantém o que é de manter. Além do mais, haverá sempre dúvidas do que é a vontade divina, uma vez que, retirados os ensinamentos óbvios e inquestionáveis plasmados nas Sagradas Escrituras, tudo o resto é uma interpretação do homem - por natureza falível, apesar da boa vontade, sapiência e discernimento adquiridos em séculos. 

 

(Como nota de humor: o selo de garantia de uma empresa não revela ausência de erros, mas apenas controlo de um processo que garante uma margem muito reduzida de erro).

 

Vamos ao caso vertente do processo de canonização que, até onde sei, não é matéria de fé ou de moral, pelo que está “sujeito” a discordâncias. Não sei, como escrevi no texto, de onde vem a necessidade (e não obrigatoriedade) da existência de dois milagres. Numa digressão descontrolada da mente, voltei a Abrantes, ao 1981 em que acabei o serviço militar. Uma das fórmulas usadas na redacção dos louvores era “excedeu-se no cumprimento do dever”. Isto é, alguém havia ido mais além do que em bom rigor lhe competia. Alguém terá de explicar-me (e a sua excelente tentativa não foi suficiente) porque motivo Frei Bartolomeu dos Mártires (como outros) está isento da obrigatoriedade de demonstração dos 2 milagres para ser canonizado e a Madre Teresa (porque foi dela que falámos) não está. Porque motivo a congregação que trata dos santos não poderá usar do mesmo critério para (quase) toda a gente que alguém entende ser incluída no catálogo dos santos. Porque motivo alguém não poderá dizer que no nosso desafio para a santidade (e eu acho que somos desafiados à santidade, que é um nível acima da bondade, ou será a bondade suprema) se “excedeu no cumprimento do dever”. Como? Através de evidências, testemunhos, factos, números, impressões. Não de um milagre que afectou UMA pessoa. O manto de Jesus foi essa pessoa mas foram, acima de tudo, os rostos de milhares de outros.

 

Aliás, em tudo correndo como previsto, a Madre Teresa será canonizada em Roma, na presença de milhares e milhares de pessoas. Experimente-se perguntar a uma, duas, cem, mil, o que fez dela uma Santa. Quem saberá o milagre que ela fez a uma cidadã dos confins do Brasil? Quem não dirá que o milagre dela foi a vida dela? Dir-me-á o NP que isso não é mais do que vox populi. Afinal, o que é a igreja se não o povo de Deus a caminho?

 

Uma investigação histórica dará a perceber que o celibato dos padres (com o qual eu concordo) não é uma questão teológica, mas que se prende com questões de poder económico numa dada altura da igreja; perceberemos que a não ordenação das mulheres (sobre a qual não tenho opinião firmada) é uma decisão prudencial, mais do que teológica; perceberemos que a indissolubilidade do casamento (com a qual eu concordo) está na Bíblia. Perceberemos, por fim, que nada se diz sobre os processos de canonização, pelo que os trâmites seguem um enquadramento histórico específico, definido pelos homens nesse tempo específico. A Igreja, ao ser mais célere nos processos de canonização, adaptou-se, percebeu que tinha de mudar. Talvez tenha ouvido alguém que disse: “discordo”. 

 

A opinião da igreja não é sempre mais qualificada do que a minha, pese embora a frase poder ler-se de forma presunçosa. (Aliás, que igreja é esta que tem opinião? O papa, o colégio cardinalício, os bispos, os párocos?) Porque a opinião da igreja é feita através da soma da minha opinião, da sua opinião, da opinião do D. Manuel Clemente, dos outros bispos, dos diáconos, da multidão de gente anónima que ama a Igreja e que quer lutar para que ela seja cada vez melhor. Nem que seja através da discordância. Porque a igreja também tem (ou tem acima de tudo) uma dimensão terrena, palpável, que toca os seu membros. 

 

Um abraço do tamanho inaudito da minha resposta.          


JdB

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