28 dezembro 2020

Da morte

Revisito, talvez pela última vez, Somerset Maugham (in A Writer's Notebook) numa tradução livre e minha:

Os homens, comuns e vulgares, não me parecem preparados para a tremenda realidade da vida eterna. Com as suas pequeninas paixões, as suas pequeninas virtudes e os seus pequeninos vícios, estão bem preparados para o mundo quotidiano; porém, o conceito de imortalidade é demasiado vasto para seres moldados numa matriz tão pequena. Mais do que uma vez vi pessoas morrerem, de forma pacífica ou trágica, e nunca percebi, nos seus últimos momentos, algo que sugerisse que o seu espírito era eterno. Morrem como morre um cão. 

Um dia, numa reunião do board da Childhood Cancer International, falou-se de cuidados paliativos, da presença dos pais ou de acompanhamento espiritual (fosse de que natureza fosse) para que a morte de uma criança pudesse ser mais digna. Lembro-me de, num impulso, ter dito que a morte de uma criança nunca seria menos digna do que a morte de outra, quaisquer que fossem as diferenças. Talvez a ideia subjacente não fosse uma morte menos digna, mas menos humana.  

Talvez este texto, escrito em 1902, falasse dessa dignidade / humanidade, e não fosse apenas o azedume de um escritor genial e fantástico observador da espécie humana. Talvez muitas mortes no início do século XX fossem pouco humanas, dado a incipiência dos cuidados paliativos. Por outro lado, questiono-me em que pensam os que morrem, os que sabem que vão morrer e que acreditam numa vida eterna. Será um conceito suficientemente reconfortante para que um crente avance para essa última viagem de alma tranquila? Não sei. 

Um escritor russo - de que não lembro o nome - dizia que os Homens não têm medo da morte, mas do momento antes da morte. Talvez seja assim, e não haja fé que que substitua um químico que nos deixe exalar um último suspiro com uma tranquilidade artificial. Podemos morrer com medo, com angústia, com tristeza. Mas nunca com um latido, como um cão.

JdB    

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