Quando Francisco encontra Gandhi
Também na Índia as pessoas leram a “Fratelli tutti”, considerando a encíclica muito instrutiva, educativa e edificante. Quando enviei uma cópia aos meus amigos hindus, uma delas, que dedicou a vida ao trabalho pela paz e anima um grande movimento nesse sentido denominado “Shanti Ashram” (Casa da Paz”), escreveu-me imediatamente, pedindo-me para ajudar os jovens membros da associação a aprofundar o espírito da encíclica e motivá-los para ações concretas a favor da paz. Aceitei. Houve quinhentos inscritos, mas dado que o “teleseminário” só admitia um número limitado de participantes, na conferência de 7 de novembro assistiram algumas centenas de pessoas. A todos foi pedido para ler o documento, com o propósito de se prepararem. A um grupo de cinco jovens, entre eles um muçulmano e um cristão, foi também pedido para comentar, com brevidade, o texto.
Os jovens ficaram sensibilizados pela mensagem de esperança do papa. Sentem-se encorajados quando lhes é dito que na sociedade nenhum é inútil ou não desejado. Disseram que o santo padre se concentra no potencial do contributo de cada pessoa para a sociedade. Declararam repetidamente que amam o papa e que se preocupam com ele; as barreiras das religiões não os podem impedir de se unir ao movimento proposto profeticamente pelo papa na “Fratelli tutti”. Os jovens apreciaram o pensamento do santo padre, que convida «todos a estar juntos, mesmo quantos estão fora do redil católico».
Os participantes hindus, em particular, leram atentamente as entrelinhas da encíclica: «O encontro de que o santo papa escreve não tira o espaço para o silêncio na nossa vida»; o sistema religioso hindu dá importância à meditação, à contemplação e ao silêncio na prática da religião. Os jovens também retiveram que o Covid-19 pode ser visto como uma oportunidade de enriquecimento para todos, e é isso que o papa afirmou através da sua mensagem na “Fratelli tutti”.
A menção a Mahatma Gandhi no fim do documento suscitou particular entusiasmo entre os jovens na Índia; leram o texto e refletiram sobre ele no contexto das suas tradições religiosas. Fiquei surpreendido com as intuições dos jovens e pelo seu amor e afeto pelo santo padre, expressos de modo explícito durante o seminário pela internet. Definiram-no como «uma voz moral» única no mundo atual. A comunidade dos Focolares, que mantém relações de amizade com a Ashram, foi uma presença encorajadora no encontro. Os jovens pediram um outro encontro para examinar mais em profundidade a riqueza da encíclica e a urgência de a aplicar.
Desejo acrescentar uma observação sobre Mahatma Gandhi, dado que o santo padre tocou o coração de muitos, especialmente na Índia, atribuindo a sua inspiração para escrever a “Fratelli tutti” também a Mahatma Gandhi, que é honrado como “Rashtrapita”, ou “Pai da Nação”.
Na “Fratelli tutti”, o papa Francisco fala do papel da política na sociedade. Sou capaz de imaginar o rico diálogo que se teria realizado se o Mahatma tivesse encontrado o papa Francisco. O Mahatma Gandhi sustentava, de maneira clara e forte, que não se pode identificar a religião com a política, nem se pode separar a política da religião. Sugeriu, com firmeza, que toda a política seja acompanhada pela espiritualidade. Explicou que só os fundamentos religiosos podem ajudar-nos a analisar com honestidade e em profundidade qualquer resposta política necessária para resolver os problemas. Gandhi motivou o seu pensamento político recorrendo ao património espiritual hindu, sobretudo ao triplo caminho para a libertação no “Bhagavad Geeta” (um caminho de fé, razão e ação).
Na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz do ano passado (1 de janeiro de 2019), o santo padre refletiu sobre o papel da «boa política (…) ao serviço da paz». Quem detém cargos políticos, escreveu, deve exercer a sua função ao serviço dos outros, baseando o seu trabalho nos fundamentos da caridade e das virtudes humanas. Também o Mahatma Gandhi considerava que o compromisso político devia ser um serviço generoso, e definia todo o serviço generoso como uma oração a Deus.
A política não é nem para a autogratificação nem para os interesses adquiridos do partido político; o compromisso na política deve ser um testemunho da verdade apreendida na base das próprias convicções religiosas (tal como é ensinado oficialmente pelas várias tradições religiosas). Segundo Gandhi, a natureza da política não é nem puramente secular nem totalmente afastada da espiritualidade. Fundamentalmente, a política diz respeito à ação; todavia, nenhuma ação é neutral; baseia-se numa inabalável sabedoria, que é indispensável antes de agir. Portanto, a oração tem um papel essencial na vida da pessoa.
Não se deve subvalorizar a influência que nosso Senhor Jesus Cristo teve na vida do Mahatma Gandhi. O discurso da montanha (Mateus 5) foi muito importante para ele, e ele afirmou com firmemente que as bem-aventuranças continuam a ser uma inspiração indispensável para todo o ensinamento social. Como hindu comprometido, Gandhi era fascinado pelo princípio moral e pelo símbolo ético de Jesus. Escreveu: «Posso dizer que nunca estive interessado num Jesus histórico. Nem sequer me importaria se alguém demonstrasse que o homem chamado Jesus na realidade nunca tivesse existido, e que quanto se lê nos Evangelhos só é fruto da imaginação do autor. Porque o Sermão da Montanha permaneceria sempre verdadeiro aos meus olhos».
Gandhi era, seguramente, movido à ação profundamente espiritual, mas a sua atitude era baseada nos valores. Uma leitura completa dos seus escritos permite-nos concluir que era afeiçoado à pessoa de Cristo. Escreveu: «Durante muitos anos da minha vida considerei Jesus de Nazaré um grande mestre, talvez o maior que o mundo já teve (…). Posso afirmar que Jesus ocupa um lugar especial no meu coração como mestre que exerceu uma importante influência na minha vida». O Mahatma Gandhi considerava Jesus o modelo supremo a imitar.
O Mahatma Gandhi propôs que cada político prometesse comprometer-se pela verdade e a não-violência. A não-violência não deve ser professada apenas com palavras. É preciso purificar as intenções, os projetos, o ponto de vista, os pensamentos e as convicções pessoais, bem como a maneira como se responde aos desafios da vida; são todos conceitos contidos na definição que Gandhi dá da não-violência.
Os jovens que participaram na reflexão sobre a “Fratelli tutti”, na maioria hindus, consideraram que, como o Mahatma Gandhi, o papa Francisco deseja uma ação transformadora da parte de todos na nossa sociedade e no mundo atual. É preciso enfrentar as situações com uma ação bem ponderada e planificada. Gandhi considerava que não há alternativa: é necessário responder às situações com a não-violência (“ahimsa”), porque se à violência se responde com a violência, é certo que o mundo caminhará para a autodestruição.
Para poder dar uma resposta não-violenta, Gandhi preparava-se com uma vida de oração regular, jejum, silêncio e contemplação. Ele estava convencido de que o não responder à violência seria uma violência ainda maior. Considerava que Jesus nos ensinou, com o sacrifício da sua vida, a viver na lógica do amor. Muitas pessoas na Índia sabem que a vida e o ensinamento de Jesus foram revolucionários. Esperam que os cristãos em todo o mundo vivam segundo o exemplo de Jesus. O Mahatma Gandhi viveu a sua vida na lógica do amor porque acreditava firmemente que era a única lógica capaz de salvar o mundo. A sua política, o seu pensamento, as suas ações e o seu sacrifício da vida são uma consequência do seu compromisso para com a lógica do amor.
D. Felix Anthony Machado
Arcebispo-bispo de Vasai, secretário-geral da Conferência dos Bispos Católicos da Índia
In L'Osservatore Romano (Trad.: Rui Jorge Martins)
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