Este livro, do qual sou fiel e transiente depositário (e que guardo com desvelo) é, todo ele, um conceito. Numa leitura rápida e distraída, poderia ser uma antologia breve de receitas de cozinha de um campo de concentração. Entre Bergen-Belsen e Bircher-Benner não há uma diferença fonética substantiva. Os olhos fechados remeter-nos-iam para esse período negro da nossa História.
(a talhe de foice, li algures, a propósito da polémica recente de Os Maias, que a expressão "período negro" poderá ter agora conotações racistas...)
Ora o livro trata, não de fórmulas gastronómicas da barbárie, mas de um conjunto de receitas saudáveis desenvolvidas por "Mme. Kunz-Bircher e seus colaboradores da clínica do Dr. Bircher-Benner".
Um livro com esta capa suscita pensamentos vários - e calóricos. Num certo sentido, regular a arte da cozinha através de um título como "a saúde pela natureza" é regular a vida através de uma bula, com indicação de princípios activos, de efeitos secundários, de posologia. A prática de comer é, acima de tudo, uma prática de prazer; o gosto, o contentamento, a satisfação precedem a saúde, não lhe estão dependentes. Ninguém avalia um cozido à portuguesa em termos de desperdício de vida, ninguém deglute umas iscas à portuguesa pela fonte de ferro, e o deleite de um bacalhau assado não se mede em proteínas.
Por outro lado, a ideia do crudivorismo, no qual o livro se espraia (segundo o dicionário, regime de alimentação em que apenas há ingestão de alimentos crus e não processados) é a racionalização do êxtase, como se o desvario fosse acompanhado de uma tabela. Uma cenoura crua deixa de ser uma sensação aprazível para se transformar num entrada no Olimpo da saúde; um elemento processado desnecessariamente é um quase pecado, algo que deveria fazer-se no remanso do lar, de cortinas fechadas, resguardado de olhares zelosos.
O vegetarianismo é a comida saudável levada (e não elevada) a um novo patamar. Excluídas as intolerâncias alimentares, é uma opção de vida toda assente no não: repete-se ad nauseam o não como isto, o não como aquilo. O vegetariano - ou o militante da comida saudável, que são irmãos - é o fundamentalista da religião, o falso pudico que só fala em falta, em culpa, em castigo, que vê num seio levemente descoberto a perdição da alma e a Geena do incréu. Um intestino que se quer furiosamente saudável é uma alma que se quer furiosamente comedida.
Na página 178 do livro em apreço há um alerta particularmente interessante. Cito (negritos no original):
Supressão de todos os excitantes. - No regime dos doentes, ainda mais do que no dos saudáveis, deverão diminuir-se todos os temperos excitantes, que possam embotar o paladar. Suprimir-se-ão a mostarda, a pimenta, o caril, o café, o chá preto, o tabaco. Este último, além da sua acção tóxica (e da acção cancerígena do alcatrão do tabaco), embota igualmente o paladar.
Suprimir a mostarda, a pimenta e o caril dos tachos parece-me indesejável; suprimir o chá preto e o tabaco enquanto temperos parece-me surpreendente.
O livro menciona ainda abundantes receitas de sopas, de legumes, de molhos, ou de doces - todos com açúcar. Não há receituário de peixe ou de carne, mas desta espécie de bíblia suíça constam as delícias benfazejas das batatas fritas, das batatas à lionesa (com manteiga, azeite e óleo) ou das batatas com natas.
Maximilian Oskar Bircher-Benner morreu em 1939, com 71 anos. Pode dizer-se que morreu idoso. Terá vivido feliz?
JdB
Eu sou daquelas sensaboronas que come para viver.
ResponderEliminarTenho ataques de gula, empanturro-me com pão e manteiga, bebo vinho e, em dias maus, como uma tablete de chocolate preto, mas fico tão mal que volto ao modo de sobrevivência. Bendito Brichen breden ou lá como se escreve. 🤣