15 março 2021

Das conversas

Sigamos cronologicamente. 

  1. Seis sessões de coaching com uma profissional inglesa. 
  2. Um artigo que o Padre Tolentino Mendonça escreveu para o Expresso (24 de Agosto de 2019), intitulado Conversem uns com os outros. 
  3. Um texto Transformando sofrimento em narrativa e narrativa em uma nova vida (Tatiana Piccardi, EFLCH/Universidade Federal de São Paulo, Brasil).
Nas três ofertas de que fui beneficiário há mais em comum do que a generosidade, ou o facto de provirem de mãos amigas, pormenor que é despiciendo. O fio que liga as três referências acima é a conversa ouna expressão afortunada da académica, ato de fala curativo feliz. As três realidades referidas acima são diferentes: (i) sessões de aconselhamento profissional, (ii) aspectos da vida social ou (iii) dinâmicas em grupo de pais em luto. No entanto, em todas elas há esta ciência do encontro (Pe. Tolentino) que nos interliga com o(s) outro(s), esta experiência ancestral de contar e trocar histórias de vida (T Piccardi).

No decurso de uma entrevista, e falando com algum conhecimento de causa, afirmei que não havia nada pior para um Pai que passa por esta experiência do que a sugestão alheia de se falar temas ligeiros. Muitas vezes os pais querem exercer esta fala curativa feliz, querem contar uma história, partilhar uma experiência, alumiar um buraco negro que têm dentro de si. Como diz T Piccardi, [t]odas as mães e o pai presentes nas reuniões relatam sua dificuldade principal: a falta de ouvintes para suas histórias, para as histórias de vida e morte de seus filhos. Reclamam que a vida segue, em pouco tempo as pessoas se esquecem dessas crianças que se foram, e os pais ficam sós, sem ter com quem falar, sem ter quem ouça as histórias inesquecíveis que constituem a vida de cada filho morto. Não resisto, por isso, a citar outro texto do Pe. Tolentino, já publicado neste estabelecimento: 

(...) Um dos textos mais impressionantes sobre o valor da escuta é o conto “Tristeza” de Tchékov. Conta a história de um cocheiro, Iona, que perdeu um filho e não encontra, entre os humanos, ninguém disponível para o amparar. «Precisa contar como o filho adoeceu, como padeceu, o que disse antes de morrer e como morreu... Precisa descrever o enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto. Na aldeia, ficou a filha Aníssia... Precisa falar sobre ela também...», mas ninguém o ouve. O cocheiro volta-se então para o seu cavalo e enquanto lhe dá aveia começa a expor-lhe, num longo e dorido monólogo, tudo o que viveu. E as últimas palavras do conto são estas: «O cavalo foi mastigando, enquanto parecia escutar, pois soprava na mão do seu dono... Então Iona, o cocheiro, animou-se e contou-lhe tudo».    

Durante seis semanas, oferta de quem achou que talvez ajudasse à minhas responsabilidades internacionais, tive a experiência inédita do coaching via zoom com uma técnica inglesa, ex-jornalista da BBC. O que fizemos durante seis horas no total? Conversámos. Não estabelecemos objectivos, não desenhámos um roadmap, não discutimos estratégias, embora tivéssemos pensado e falado sobre isso. Durante seis horas fiz da palavra partilhada um reduto e um alimento (Pe. Tolentino) tendo encontrado, numa total desconhecida, um eco mais purificado das minhas palavras pensadas num inglês imperfeito. Não fiz catarse, não falei do passado doloroso ou da precisão das memórias; falei e ouvi e, talvez mais importante, ouvi-me. O reflexo das minhas palavras chegou-me mais nítido, mais pedagógico, mais construtivo, mais depurado. À despedida, e repetindo uma fórmula usada e abusada, agradeci por alguém ter ouvido o que eu queria dizer a mim próprio, um homem numa circunstância específica, com responsabilidades específicas. 

Conversar é uma palavra onde cabem muitos mundos: conversamos para aprender, para desabafar, para nos ouvirmos. Como diz o Pe. Tolentino, [f]requentar os outros capacita-nos para o encontro connosco mesmos e o conhecimento próprio dá-nos chaves para viver a aventura da alteridade. Num certo sentido, a conversa é um livro pré-Gutemberg e, por isso, um acto único que deve ser preservado e acarinhado. É um exercício de oralidade, sujeito à economia da memória ou da (pouca) atenção que damos aos outros, porque o tempo é o do ecrã, da voragem e do imediatismo, do desejo de leveza e de sucesso. Iona e os pais brasileiros em luto vivem realidades iguais: não só perderam os seus filhos para a morte como não têm interlocutores. O cocheiro socorreu-se do cavalo, os pais recorreram aos grupos de ajuda; em ambos os casos tudo é monólogo, porque não há interlocutores com quem exercer o gosto da troca. Não basta que nos oiçam, nem sempre queremos que nos digam. Mas no coração dos que sentem a vantagem da conversa há sempre o desejo de um compasso partilhado. 

JdB

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