11 março 2021

Porque lês?

Porque lês?

Fiz esta pergunta um dia ao jantar com dois amigos. Um lia porque tinha uma curiosidade insaciável por tudo; o outro - cuja resposta não me lembro - talvez lesse como entretém, ou como curiosidade saciável. Já não me lembro qual foi a minha resposta. Talvez achasse, ingenuamente, que o expandir da consciência pudesse fazer de mim uma pessoa melhor. 

De um determinado ponto de vista, há quem pense que a cultura, a abertura do espírito, a aquisição de novos conhecimentos, ou de novas realidades, aperfeiçoa o ser humano, faz dele alguém melhor, porque o imbui de uma maior tolerância. Há quem pense exactamente o contrário: um acréscimo de cultura não se traduz num acréscimo de perfeição.

Dissequemos de forma provocadora: é um dado adquirido que a leitura é benéfica e, por isso, se faz pressão sobre o governo para desconfinar as livrarias. De um ponto de vista meramente económico, ou de protecção sanitária, uma livraria é igual a uma loja de retrós, a uma florista ou a uma chapelaria. Ora, a pressão sobre a livraria tem um intuito não exclusivamente económico: entende-se que há um acesso à cultura. Significa isto que, sob um determinado ângulo, ler é mais importante do que comprar carrinhos de linhas ou cheirar gladíolos.

Ora, o que faz a leitura de Pra Cima de Puta, de Cristina Ferreira, pela riqueza moral das nações? E A Minha Luta, de Adolf Hitler, tem uma influência positiva na formação do ser humano?  Eu, Carolina, escrito por uma das mulheres de Pinto da Costa, promove a expansão da nossa consciência? E se forem as memórias de um assassino em série ou de um corrupto condenado? Obviamente que este parágrafo é caricatural. Podemos falar no Eça, que é mais consensual; mas O Crime do Padre Amaro promove as vocações ou gera confiança na Igreja? 

É preciso perceber o que faz o livro pelas pessoas: é cultura? É uma sequência de momentos aprazíveis? É a satisfação de uma curiosidade insaciável? Se o livro (como representante da cultura, para efeitos deste texto) acrescenta valor às pessoas, temos de perceber porquê. Se é apenas um entretém (por melhor que seja), o gozo de uma experiência salutar ou a construção de novos mundos interiores, então ler pode ser como comprar orquídeas, fazer crochet ou comer um superior bacalhau à Brás. 

A leitura de um livro mau, cheio de inumanidades, fará menos pela saúde mental das pessoas do que uma refeição equilibrada e vagarosa, do que um concerto ou, porque não, do que a contemplação de um quadro. No entanto, um livro desconfinado parece ser sinónimo de uma cultura acessível, tudo isto num país onde não se lê, onde se publica muito lixo e onde uma pessoa que escreve uma coisa informa que é escritora de profissão.  

Termino o texto provocador com disclaimers: gosto muito de ler; gosto do Eça, da Cristina Ferreira nem sequer como pessoa. Se a leitura faz de mim melhor pessoa? Tanto como ter uma boa conversa com um amigo, ter uma refeição cuidada e lenta ou ouvir o Requiem de Mozart. São momentos de paragem, de partilha, de elevação. Se concordo que se devem desconfinar as livrarias? Gosto de pensar que sim, enquanto há tempo. Talvez daqui a duas gerações não se leia um romance, por não haver vagar ou concentração para tal. Tenho em minha posse uma mesa de casa de jantar; talvez daqui a duas gerações seja uma peça icónica, como o primeiro telefone ou aquilo que se diz ser um preservativo do tempo dos faraós, e que eu vi no museu do Cairo. 

O que liga um romance, uma mesa de sala de jantar ou um preservativo faraónico? A transitoriedade das coisas transformadas em obsolescência ou em peça de museu. Ou a ideia, em declínio, de que cultura torna as pessoas melhores.

JdB           

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