Nota prévia: algum do raciocínio subjacente a este post deriva de uma conversa havida sobre o tema, pelo que nem todo o raciocínio é meu.
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No final dos anos 60, António dos Santos (1919 - 1993) grava um fado (talvez balada...) intitulado Partir é morrer um pouco, com música sua e letra de Augusto Mascarenhas Barreto.
Partir é morrer um pouco
Adeus, parceiros das farras
Dos copos e das noitadas
Adeus sombras da cidade
Adeus langor das guitarras
Canto de esperanças frustradas
Alvorada de saudade
Meu coração como louco
Quer desgarrar-me do peito
Transforma em soluço a voz
Partir é morrer um pouco
A alma de certo jeito
A expirar dentro de nós
Voam mágoas em pedaços
Como aves que se não cansam
Ilusões, esparsas no ar
Partir é estender os braços
Aos sonhos que não se alcançam
Cujo destino é ficar
Deixo a minh'alma no cais
De longe, canso sinais
Feitos de pranto a correr
Quem morre, não sofre mais
Mas quem parte é dor demais
É bem pior que morrer
Embora para algumas pessoas ouvir António dos Santos seja um exercício penoso, é vital ouvi-lo para se perceber do que falo.
Em 2021, António Zambujo integra no seu último disco (Voz e Violão) um fado intitulado Adeus parceiros das farras, com música de António dos Santos e versos de Augusto Mascarenhas Barreto. Apesar da dupla António dos Santos / Mascarenhas Barreto ser responsável por outras composições (Fado é Canto Peregrino ou Gaivotas em Terra, por exemplo) falamos do fado Partir é morrer um pouco, cujo título Zambujo alterou, substituindo-o pelo primeiro verso.
Dizer que as interpretações são diferentes está no domínio do lugar-comum, porque os cantores são diferentes e Zambujo não é imitador. Em primeiro lugar, porquê substituir Partir é morrer um pouco por Adeus parceiros das farras? Terá Zambujo decidido gravar esta música, como me aventaram por graça, após cinco dias de farra com amigos? E será que António dos Santos já pensava na morte que, afinal, só chegaria 25 anos depois?
Conheço muito bem a versão original do fado, pois gosto muito de António dos Santos. Na verdade, encontro-lhe uma gravitas (no sentido original do termo, que era peso) que aprecio, apesar da toada repetitiva dos seus fados. Porém, ao ouvir a versão original é isso que fica: uma voz grave, acompanhada pelo ritmo grave da viola, a cantar um poema grave. A versão de Zambujo é ligeira, porque a própria voz do cantor se proporciona a isso - não há gravitas, talvez haja, numa ou noutra música dele, a nostalgia das grandes paisagens.
Há, na versão actual de Partir é morrer um pouco, uma certa desconformidade, apesar da interpretação ser irrepreensível do ponto de vista musical. Onde está, então, a desconformidade? Não sei, talvez esteja no timbre de voz, na diferença abissal, na ideia de que partir é morrer um pouco não é a mesma coisa que adeus parceiros das farras, apesar do poema ser o mesmo.
JdB
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