Foi seguramente por ser monárquico e anglófilo que assisti, com interesse, às cerimónias fúnebres do Príncipe Filipe de Inglaterra. A conjunção "e" é importante: não acompanharia com a mesma curiosidade se se tratasse de um Presidente da República inglês, não seguiria com o mesmo gosto se fosse um Príncipe consorte da Holanda.
Em sentido lato, o protocolo é o grande inimigo do improviso, com tudo o que isso tem de bom e de mau. Porém, neste tipo de cerimónias - pode ser um jantar de gala, um casamento, uma cerimónia fúnebre, uma homenagem aos caídos nas várias guerras - o protocolo é o inimigo de uma certa barbárie; é a regra que ordena o caos, é a informação que dá segurança ao inexperiente, é a instrução que confina o saloio ou retrai o criativo. O protocolo define o que não pode ser universalmente intuído: o tempo das coisas, a posição relativa das pessoas, as precedências, os ritmos feitos de som e silêncio, de movimento e quietude.
Ninguém bate os ingleses neste tipo de protocolo. Assistir a uma cerimónia desta envergadura - mesmo que com apenas 30 convidados - é perceber que nada é deixado ao acaso, que os tempos se cumprem, que cada um sabe o seu sítio e que ninguém diz a ninguém "com licença" para passar num corredor estreito. Há, em tudo, uma atenção impressionante aos mais ínfimos detalhes. Não falo da precisão de um relógio suíço ou do controlo de uma missão espacial: falo de uma organização que tem tanto de funcional como de estético. Nada se faz que não tenha um propósito, ou que não esteja suportado numa tradição que se quer manter, sob risco de perda de uma civilização assente (também) nos símbolos.
Poderá parecer anacrónico saber-se que o próprio Príncipe Filipe participou, ao longo dos últimos 18 anos, na preparação do seu próprio funeral. Estamos habituados a ouvir das pessoas, como eu próprio ouvi, que querem ser cremadas ou não, que querem música ou não, que querem flores ou não. O que ele decidiu é independente da sua condição de marido da rainha de Inglaterra: não encomendou a composição de um Requiem, não sugeriu grandes coros ou grandes desfiles. Limitou-se a decidir coisas que definissem quem ele era, quais as suas origens, a que dava ele importância, o que o constituía. Não surpreende ver-se, num local mais discreto mas, mesmo assim, parte integrante de tudo, um carro puxado por dois cavalos; em cima do banco da frente a sua manta, o seu par de luvas, a caixa de plástico onde guardava os torrões de açúcar com que mimava os cavalos.
Independentemente da minha condição de monárquico ou de anglófilo, ou de pessoa que encontra grandes virtudes no protocolo (mesmo que com uma dimensão caseira) sou um homem muito dado aos símbolos. Ver centenas de soldados de cabeça tombada para baixo, ver os estandartes apontados para o chão, ouvir as músicas escolhidas é, do ponto de vista estético (e emocional, que a estética é uma emoção) perceber uma lógica, um fio condutor que une tudo. Sábado fiquei com a convicção pequenina e vaidosa de que o meu apego ao simbolismo das coisas é uma qualidade. A minha vaidade será perdoada, espero eu.
JdB
Com a graça de Deus, continua bem. E bom de ler.
ResponderEliminarAgradeço o seu comentário. Bom regresso, se for caso disso.
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