23 abril 2021

O Fado, canção de vencidos

As duas mães
1930 | G. Santos Monteiro
Ao encomendar-se o morto,
Ao fazer-se o batisado,
As duas mães se encontraram
Junto do templo sagrado.

Pela mãe acompanhado
Entra a capela um anjinho,
Tão lindo no caixãosinho
Descoberto e enfeitado.
E enquanto o padre anafado
Orava, frio, absorto,
Da pobre mãe sem cofôrto
P’las faces febris, candentes,
Caía o pranto em torrentes
Ao encomendar-se o morto.

Nisto, ao pé da capelinha,
Outro cortejo aparece,
Outra mãe que ao colo aquece,
Uma linda criancinha.
Vai levar, a inocentinha,
Da pia o banho sagrado.
Com que amor e cuidado,
Vendo esse botão de rosa,
A mãe sorrirá ditosa
Ao fazer-se o batisado…

Vai o morto a retirar
No descoberto caixão,
Entra ridente e brincão
O vivo p’ra batisar.
Daquele a cor faz chorar,
Deste os olhos se escancararam,
E quando ambos passaram,
Um saindo outro entrando,
No adro bom e nefando
As duas mães se encontraram.

Cheio de afecto e carinho
Trocam elas um olhar
E vê-se a feliz chorar
Ao olhar o caixãosinho.
Entretanto ao inocentinho
Sorri a mãe do finado.
Essas mães, coração dado,
Tão bem se compreenderam
Que o seu sentir inverteram
Junto do templo sagrado.
G. Santos Monteiro – «As duas mães», Guitarra de Portugal, 30 de abril de 1930, n.º 196, ano n.º 8, p. 4.
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