Eis o título de um dos textos de Caminhos da floresta de Heidegger: “Para quê poetas”. Seriam necessários poetas mesmo se tudo ficasse reduzido ao que a ciência nos dá a conhecer, não perdera o mundo o seu encanto sempre que se apagasse a magia de nos maravilharmos com o que existe e acontece. Começamos a habitar um mundo desencantado sempre que compreendemos tudo através do conhecimento científico. Quando já não há lugar para o mistério, passamos a ser Senhores de todo o processo que crie realidade. Talvez até queiramos controlar tudo, ou quase tudo. Talvez até há quem deseje ser um Senhor Criador do real, como se pudesse tudo prever e construir por meio da tecnologia. Mas é aí que precisamos de poetas, para nos ajudarem a dar ao mundo que habitamos um novo encanto e sabor.
Foi a Carta Apostólica Candor lucis aeternae do Papa Francisco que me fez lembrar do texto de Heidegger. Para não deixar passar despercebido o 7.º centenário da morte de Dante Alighieri, o Santo Padre leva-nos a revisitar a figura deste poeta e o que ela significa para a Igreja, em particular, e para a humanidade, em geral. Citando o seu predecessor Paulo VI, Francisco afirma: “em Dante, todos os valores humanos (intelectuais, morais, afetivos, culturais, civis) são reconhecidos, exaltados; e é muito importante notar que este apreço e honra se verificam enquanto ele mergulha no divino, quando a contemplação teria podido anular os elementos terrenos”.
A celebração da efeméride não procura apenas homenagear a obra de Dante, mas sobretudo o Homem que ele foi. Pois o poeta não nos fala apenas nos enredos que escreveu. A sua vida é ela mesma um texto cuja trama narrativa não desencanta o mundo, nem fecha os seus protagonistas na contingência do sofrimento e do desencanto. “Dante descobre [diz o Papa] a vocação e a missão que lhe foram confiadas, de modo que, paradoxalmente, de homem aparentemente falido e desiludido, pecador e desanimado, transforma-se em profeta de esperança”.
Não se trata apenas de afirmar a Ressurreição no final do caminho, mas de a saborear no presente. Não se trata apenas de acreditar num futuro que poderá remotamente vir a acontecer. Trata-se, pois, de confiar que não é vão o “desejo humano de felicidade”; um desejo presente, atual. Por mais dura que seja a vida e por mais desencantado que o mundo possa parecer, o poeta deixa-se maravilhar no seu presente ansiando por uma “plenitude de vida” que nunca deixa de o habitar.
A missão do poeta é profética, não só porque revela toda a falta de autenticidade – criticando até mesmo “os crentes, tanto Pontífices como simples fiéis, que atraiçoam a adesão a Cristo e transformam a Igreja num instrumento em prol dos próprios interesses” –, mas também porque o seu poetar nos faz sentir como pessoas que não são de aqui de baixo. A este respeito, Francisco emprega o termo “transumanar”, no sentido de “ultrapassar o humano”, que São João Paulo II terá referido a propósito de Dante. “«Transumanar». Foi este o esforço supremo de Dante: fazer que o peso do humano não destruísse o divino que existe em nós, nem a grandeza do divino anulasse o valor do humano. Por esta razão, o Poeta leu justamente a própria vicissitude pessoal e a da inteira humanidade em chave teológica”.
O poeta não começa por acreditar em Deus. Nem olha em primeiro lugar para o futuro prometido lá do alto, para uma Ressurreição que há de acontecer num depois longínquo. Nada disso. Ele começa aí mesmo onde está. Acredita no desejo que agora o habita. Acredita no homem, por mais miserável que seja. Quanto mais sombrio for o horizonte que se lhe afigure, tanto mais ele se deixa alimentar pelo seu desejo interior. E é dessa forma que ele se revela capaz de se fascinar por tudo quanto exista, mesmo num mundo dilacerado pela dor e pela angústia. O poeta maravilha-se, simplesmente, no presente que experimenta. No fundo, ele começa por acreditar no homem para acabar por acreditar num Deus que habita o seu coração. Em vez de dirigir o olhar e o entendimento logo para Deus, o poeta começa por usufruir humildemente dos vestígios que o Criador nos deixa. Sente e saboreia assim a presença de Deus no mundo, um pouco como São Francisco de Assis faz no seu célebre Cântico das Criaturas. Em vez de esperar pela consumação final de todas as coisas, antecipa-se à comunhão dos santos, vivendo já em harmonia com tudo e todos.
Talvez por isso o papel das figuras femininas seja tão importante em Dante: Maria, a virgem mãe, “figura da caridade”; Beatriz, qual “símbolo da esperança”; e Santa Luzia, personificando “a fé”. Em todas estas figuras, o feminino é sinónimo de fecundidade e generatividade. Mais uma vez, em vez de nos apresentar o resultado final de uma humanidade acabada, o poeta faz-nos viver um processo que nos transforma por dentro. Pouco a pouco, ele ajuda-nos a ver o mundo doutra forma, não só com mais esperança, mas também com mais sabor. Porque pior do que a “morte de Deus” é deixar morrer o fulgor pela divindade. Sempre que esse fulgor, esse maravilhamento, nos habitar, poderemos saborear a beleza de todas as coisas presentes. E é por isso que precisamos de poetas.
Que eu queira, Senhor, receber-Vos com aquela pureza, humildade e devoção com que Vos recebeu a Vossa Santíssima Mãe; com o espírito e o fervor de todos os santos. Amén.
Publicado no Ponto sj, site dos jesuítas em Portugal, em 11.04.21
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