21 julho 2021

Vai um gin do Peter’s ?

 OBRIGADA, TERESA

Meses antes de concluir os estudos liceais, a Teresa foi convidada a falar da sua experiência de vida, isto é, da superação diária de uma síndrome diagnosticada aos 3 anos de idade, que lhe retira quase toda a visão. As crises cíclicas e imperceptíveis vão piorando o diagnóstico, sempre irreversível. O testemunho foi dado na chamada “assembleia do liceu” – uma sessão que o colégio, onde a Teresa estuda, organiza periodicamente para proporcionar aos alunos de cada ano um espaço de tertúlia-conferência semi-informal, informativo e pensado para os enriquecer humanamente. Resulta num extra às matérias do currículo escolar, sensibilizando os estudantes para as realidades que não vêm nos canhenhos de estudo. 

Apesar da parca visão, aquela teenager gira e despachada não se priva de levar um dia-a-dia animado, próprio dos seus 18 anos. Monta a cavalo desde os 11 anos, estreou-se no ski e saiu-se bastante bem com a ajuda de um professor, que fez de guia para lhe abrir os sulcos certos nas pistas escorregadias, diverte-se com os amigos e tem por disciplina preferida a educação física. Diz a mãe, com humor e lealdade, que tal proeza desportiva se deve ao desvelo dos professores, que sempre lhe garantiram as condições de segurança para fazer ginástica sem riscos... e sem ver. Só a sentir. É também a sentir, cheia de precauções e truques, que consegue cumprir tarefas banais como descer escadas, bem mais aventuroso do que subi-las. Isto dará a medida da aventura em que redundam para ela, rotinas que fazemos em piloto automático, sem a noção da dificuldade que representam para alguns. 

Falar em arriscar-se até à zona de desconforto, só peca por defeito para quem tem a zona de risco –  uns pontos acima da de desconforto – por programa de vida. E, no entanto, faz questão de viver com a normalidade máxima, o que significa um esforço maior. Isso permitiu-lhe completar o liceu com notas razoáveis, sem nunca ter chumbado e ignorando o conselho de vários docentes para distribuir por 2 anos as matérias de um, visto que o currículo daquele colégio é especialmente multidisciplinar e intenso.  

Na tal assembleia, decorrida em Abril, a Teresa deu a conhecer um pouco da sua condição particular, com uma simplicidade tocante, típica de uma bondade transparente:  

«Assembleia Liceu
21.04.2021

Quando o Professor José Feitor me deu a ideia de criar um site, estávamos numa altura cheia de entregas de trabalhos e o projecto era uma ideia mesmo gira, mas ia dar imenso trabalho e precisar de imenso tempo. Por isso, sugeri à Beatriz fazer sobre a minha doença, porque  já sabia tudo e era só escrever e estava pronto.

Mas, enganei-me… Pergunto-me como é possível ter durante 15 anos uma doença e não saber quase nada acerca dela, a não ser o facto de não ver bem.

Podem chamar falta de interesse da minha parte, mas em minha casa sempre fui habituada a ser tratada como uma pessoa normal e tenho sempre muita ajuda dos meus irmãos e da minha mãe. Por isso, nunca tive necessidade de ir pesquisar maneiras melhores de viver com a doença ou qualquer outra coisa, que de facto é importante saber acerca da “uveíte pars planitis anterior”.

Agradeço ao professor José Feitor a oportunidade de realizar este projecto incrível, porque realmente, se não fosse o professor, eu continuaria na ignorância.

Uma das curiosidades que descobri enquanto estudava a doença é que ela atinge maioritariamente homens e pessoas acima dos 60 anos. Como podem verificar, isso não acontece comigo.

A “uveíte pars planitis anterior” é uma das doenças autoimunes que está, normalmente, associada à arterite reumatóide. Está entre as 20 doenças raras do mundo.

Desde a descoberta da minha doença, que eu tomo medicamentos muito agressivos. O medicamento que tomei durante mais anos foi aquele que conhecemos por cortisona. Durante todo este tempo fui submetida a muitos tratamentos e experiências. Sublinho apenas os dois últimos. Duas injecções, uma semanal e outra quinzenal, em que a minha mãe teve de ir ao Hospital D. Estefânia aprender a dar. Eu não confiava em mais ninguém.

Esta doença foi-me diagnosticada aos 3 anos de idade. Passei por muitos hospitais. Primeiro Santa Maria, depois muitos anos em Coimbra e, finalmente, Estefânia, Capuchos e S. José.

Esta doença manifesta-se em “crises” e, de cada vez que há uma “crise,” há uma colagem da retina, de onde resulta a perda de visão irreversível. A retina não volta a descolar. Todas as crises que tive, foram (e são) invisíveis.  Por isso, só com visitas muito frequentes ao médico são detectadas. A minha acuidade visual tornou-se muito reduzida. Sou hoje portadora de uma deficiência grave. Mas que não é impedimento nem desculpa para não fazer ou fazer mal, o que tenho para fazer. E muito menos, é um impedimento para ser feliz.

Se Deus permite que eu exista com esta doença é porque faço falta. E também por isso me deu a família que tenho e todos os amigos com quem me tenho cruzado.

Estou certa, até porque experimento isso, que há um desígnio bom nesta doença.

A maior parte de vocês já reparou que eu entro todos os dias no colégio com um “trambolho”, como diz a professora Joana. Esse “trambolho” chama-se telelupa, que é só o Ferrari das lupas. Consegue focar a 1Km de distância. Só para perceberem, o novo apartamento do Ronaldo fica nas traseiras da minha casa. Tem um jardim exótico, na cobertura, que eu consegui ver na perfeição e é mesmo giro.

Todos estes instrumentos, que me facilitam a vida quotidiana, mostram a velocidade a que os cientistas trabalham para servir pessoas como eu.»

21 de Abril de 2021


Numa fotografia dos finalistas do colégio, com os seus olhos turquesa e doces
mais aptos a perscrutar o mundo interior.
Vale-lhe a combatividade para desbravar a pulso o mundo exterior. 

Não conheço muita gente que, a partir desta dificuldade imensa, seja capaz de extrair uma vivência tão benigna! Já é suficientemente espantoso levar um dia-a-dia comum. O que dizer de ser uma miúda ‘bem resolvida’, precoce em sabedoria e transbordante de gosto de viver? Se a aptidão ocular da Teresa é curtíssima, dá-se o oposto com os olhos da alma, que lhe têm permitido vislumbrar um horizonte invulgarmente amplo. Esses dispensam o Ferrari das telelupas, que a muitos de nós daria tanto jeito…
  
No salto de confiança abissal que a Teresa deu e continua a dar, diariamente, há ecos daquela atitude recorrente na Mãe de Cristo, que se dispunha a guardar as coisas mais misteriosas no seu coração. Misteriosas e incompreensíveis, umas por excesso de bizarria, outras (quiçá quase todas) por carregarem uma dor pesada.

Não é fácil abarcarmos a razoabilidade daquela escolha de Nossa Senhora perante tudo o que antevia como um abismo infindo a irromper-lhe no quotidiano e a perturbar-lhe o sossego, sem previsibilidade nem descodificação humana directa. Já nem falo em tentar imitá-la. Claro que entre a psicologia e a antropologia esbarramos numa panóplia de conceitos, que poderiam sugerir parte dos traços visíveis daquela receita à base de subtileza, bondade, uma aceitação especial em constante construção e diálogo. Claro que desencantamos expedientes psicológicos úteis, como: “empatia”, “interiorização”, “assimilação”, a devida “aculturação” balançada com discernimento e doses saudáveis de flexibilidade, umas pitadas de capacidade de “sublimação” e… falta o segredo da receita! Falta o ingrediente (ou combinação deles) que permite chegar ao tal resultado ímpar, pois esse só está ao alcance de poucos, seja por falha de entendimento da maioria, seja por falta de vontade, seja por recusa da memória. 

Quantos passam pela vida sem perceberem um décimo do que a Teresa descobriu, aceitou e se dispôs a partilhar com a frescura do seu temperamento suave?

Muito obrigada, Teresa, pela coragem, lucidez, grandeza interior para acolher com galhardia e arte um dom irrepetível da existência humana – saberes ser quem és. Começa aí a tua excepcionalidade maravilhosa...

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

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