01 setembro 2021

Vai um gin do Peter’s ?

A HISTÓRIA REPETE-SE, NO AFEGANISTÃO

De tempos a tempos, as invasões ao Afeganistão por grandes potências externas, dá azo a que uma das crónicas de Eça de Queiroz – escrita em 1880 e publicada nas «Cartas de Inglaterra» – seja citada na íntegra, porque descreve com precisão o desastre em que redundam as fracassadas incursões naquele enclave da Ásia Central. As fraquezas daquele país atípico, de fronteiras porosas e quase sem instituições com alcance nacional, tornou-o presa regular das grandes potências, que pensam ser fácil conquistar um território de geografia acidentada e poder periclitante. Zona de passagem, por onde corria a Rota da Seda, foi invadida pelos hunos, os turcos, os mongóis a mando de Genghis Khan, os persas, acabando por adoptar uma matriz islâmica radical. Porém, manteve uma estrutura de poder pulverizada pelas diferentes etnias que ali se instalaram, apesar de sobressair a pachtun. Chegou ao século XIX cobiçada pelos Czares, pela Índia britânica e pela Pérsia.  Ciclicamente (1839, 1847, 1878-80), a Grã-Bretanha fez investidas para tomar as principais cidades, a pretexto de conter os Impérios russo e persa. Mas resultaram em conquistas curtas, terminadas com banhos de sangue, a vitimar sobretudo os ocupantes. Finalmente, no rescaldo da Primeira Guerra Mundial e de nova derrota britânica, o Afeganistão liberta-se da coroa inglesa e torna-se independente. Corria o ano de 1919. 

Começando como monarquia, o país procurou sair do estilo medieval com a abolição da escravatura /servidão, o ensino obrigatório e generalizado, a construção de hospitais e demais infraestruturas, a redução da autoridade dos chefes tribais e religiosos, e até a melhoria da condição feminina. Esta foi a reforma mais polémica, que forçou o rei Amanullah Khan ao exílio. Ainda que turbulenta, a sucessão de soberanos, até ao início dos anos 70, permitiu desenvolver o país, que atingiu um grau de liberalismo assinalável. Mulheres com cara descoberta e a guiar nas estradas era comum, em Cabul. Mas tudo foi revertido com a crescente islamização da sociedade e a subida ao poder do Partido Comunista, logo após a invasão soviética, em 1978.  

Curiosamente, os comunistas até reduziram o ascendente dos chefes religiosos das diferentes tribos, deram maior liberdade às mulheres, construíram mais escolas e hospitais. Mas a militância ateísta do novo governo tornou-o odioso para a população, também revoltada com a típica purga assassina dos regimes marxista-leninistas contra intelectuais e todos os que consideravam pertencer às elites. A carnificina terá atingido mais de 100 mil pessoas, segundo os dados da Human Rights Watch. A revolta generalizada restituiu poder aos chefes dos clãs – óptimos orquestradores da sabotagem contra o invasor. É sabido como os EUA tiraram partido dessa rebelião, para organizar a guerra de guerrilha, que humilhou o Exército Vermelho, obrigando-o a bater em retirada, numa década de desgaste e perdas colossais para o Kremlin.  

No início do século XXI, repete-se o “assalto” ao Afeganistão. Desta vez, são os Estados Unidos, que resolvem acabar com o regime dos talibãs, que responsabilizavam pelo apoio dado ao autor moral do 11 de Setembro – o saudita ex-aliado dos EUA contra os russos, 20 anos antes – Bin Laden. A grande produção de ópio, que já era pujante em solo afegão, disparou, a ponto de, em 2008, já ser o líder da produção mundial de opiáceos. Também o haxixe começou a proliferar, sendo outros dos maiores produtos de exportação. Mas nada de se conseguir domar os talibãs, que lideram com mestria os inúmeros clãs em que se subdivide a população afegã. 

A retirada apressadíssima dos EUA e da NATO de um país turbulento, teve o óbvio efeito de aumentar a turbulência, o que tem favorecido os talibãs! Os mais arrevesados, admitem que Washington quisesse deixar um presente muito envenenado à China e à Rússia, ambas interessadas em pontificar nos destinos daquele Estado indomável, que se prevê voltar a ser o campo de treino dos terroristas islâmicos mais ferozes. 

Infelizmente, pouco disto é novo, à parte da nacionalidade de uma ou duas novas grandes potências interessadas no Afeganistão. De resto, o diagnóstico de Eça, escrito em 1880, mantém-se actual, descortinando com precisão o custo disparatado da cruzada bélica promovida por Londres contra aquela potência da Ásia Central:   

«Os ingleses estão experimentando, no seu atribulado império da Índia, a verdade desse humorístico lugar comum do sec. XVIII: «A História é uma velhota que se repete sem cessar».

O Fado e a Providência, ou a Entidade qualquer que lá de cima dirigiu os episódios da campanha do Afeganistão em 1847, está fazendo simplesmente uma cópia servil, revelando assim uma imaginação exausta.

Em 1847 os ingleses, «por uma Razão de Estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a segurança do império, uma barreira ao domínio russo da Ásia…» e outras coisas vagas que os políticos da Índia rosnam sombriamente, retorcendo os bigodes - invadem o Afeganistão, e aí vão aniquilando tribos seculares, desmantelando vilas, assolando searas e vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e, logo que os correspondentes dos jornais têm telegrafado a vitória, o exército, acampado à beira dos arroios e nos vergéis de Cabul, desaperta o correame, e fuma o cachimbo da paz… Assim é exactamente em 1880.

No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes enérgicos, Messias indígenas, vão percorrendo o território, e com os grandes nomes de «Pátria» e de «Religião», pregam a guerra santa: as tribos reúnem-se, as famílias feudais correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais juntam-se no ódio hereditário contra o estrangeiro, o «homem vermelho», e em pouco tempo é tudo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a estrada da Índia… E quando por ali aparecer, enfim, o grosso do exército inglês, à volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente, por entre as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o.

Foi assim em 1847, é assim em 1880. Então os restos debandados do exército refugiam-se nalguma das cidades da fronteira, que ora é Ghasnat ora Kandahar: os afegãos correm, põem o cerco, cerco lento, cerco de vagares orientais: o general sitiado, que nessas guerras asiáticas pode sempre comunicar, telegrafa para o vice-rei da Índia, reclamando com furor «reforços, chá e açúcar»! (Isto é textual; foi o general Roberts que soltou há dias este grito de gulodice britânica; o inglês, sem chá, bate-se frouxamente). Então o governo da Índia, gastando milhões de libras, como quem gasta água, manda a toda a pressa fardos disformes de chá reparador, brancas colinas de açúcar, e dez ou quinze mil homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos transportes de guerra, arcas de Noé a vapor, levando acampamentos, rebanhos de cavalos, parques de artilharia, toda uma invasão temerosa… Foi assim em 1847, assim é em 1880.

Esta hoste desembarca no Industão, junta-se a outras colunas de tropa índia, e é dirigida dia e noite sobre a fronteira em expressos a quarenta milhas por hora; daí começa uma marcha assoladora, com cinquenta mil camelos de bagagens, telégrafos, máquinas hidráulicas, e uma cavalgada eloquente de correspondentes de jornais. Uma manhã avista-se Kandahar ou Ghasnat; e num momento, é aniquilado, disperso no pó da planície o pobre exército afegão com as suas cimitarras de melodrama e as suas veneráveis colubrinas do modelo das que outrora fizeram fogo em Diu. Ghasnat está livre! Kandahar está livre! Hurrah! Faz-se imediatamente disto uma canção patriótica; e a façanha é por toda a Inglaterra popularizada numa estampa, em que se vê o general libertador e o general sitiado apertando-se a mão com veemência, no primeiro plano, entre cavalos empinados e granadeiros belos como Apolos, que expiram em atitude nobre! Foi assim em 1847; há-de ser assim em 1880.

No entanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens que, ou defendiam a pátria ou morriam pela «fronteira científica», lá ficam, pasto de corvos - o que não é, no Afeganistão, uma respeitável imagem de retórica: aí, são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das ruas, comendo as imundícies, e em campos de batalha purificam o ar, devorando os restos das derrotas.

E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma canção patriótica, uma estampa idiota nas salas de jantar, mais tarde uma linha de prosa numa página de crónica…

Consoladora filosofia das guerras!

No entanto, a Inglaterra goza por algum tempo a «grande vitória do Afeganistão» - com a certeza de ter de recomeçar, daqui a dez anos ou quinze anos; porque nem pode conquistar e anexar um vasto reino, que é grande como a França, nem pode consentir, colados à sua ilharga, uns poucos de milhões de homens fanáticos, batalhadores e hostis. A «política» portanto é debilitá-los periodicamente, com uma invasão arruinadora. São as fortes necessidades dum grande império.

Antes possuir apenas um quintalejo, com uma vaca para o leite e dois pés de alface para as merendas de verão…»

                                                                 In «Cartas de Inglaterra»

É triste que o cenário traçado por Eça só pareça pecar por defeito!

Maria Zarco

(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)


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