03 outubro 2021

Das actrizes, dos beijos e dos duplos

Em Junho de 2015 escrevi neste estabelecimento o texto abaixo. 

Leio algures que o primeiro beijo de Elizabeth Taylor foi como actriz. Vou presumir que não foi o primeiro primeiro beijo, no sentido de duas bocas que se juntam e permanecem juntas, como o primeiro beijo que se dá a uma namoradinha de muita infância nas traseiras de um prédio com o barulho dos comboios ao fundo, e cuja memória perdura porque sim. Falo do primeiro beijo carregado de sensualidade e, quiçá, de desejo. Do primeiro beijo carnal, quase pecaminoso, quase convidativo, quase desafiante - todo ele perturbador.

Imaginemos que Elizabeth Taylor beijou o actor com quem contracenou - Mr. Smith - ao fazer de enfermeira num hospital para loucos. Ela, chamada Christine Ford, apaixona-se pelo médico - John Smith - e beijam-se apaixonadamente no canto de uma enfermaria, enquanto um esquizofrénico, um deficiente mental, um psicopata preso e um toxicodependente com tendências depressivas deambulam pelos corredores de olhos esbugalhados, batas de doente e mãos agitando-se freneticamente.

A experiência do primeiro beijo não pertence, então, a Elizabeth Taylor, mas a Christine Ford. O primeiro beijo  - o da carne, do desejo, da volúpia, todo ele carregado de uma sexualidade da época - não é dela, Elizabeth, que foi Taylor mas muito Burton. Foi ela que o deu, mas o beijo é de Christine, que para o efeito é uma enfermeira, mas podia ser uma advogada chamada Pamela, uma pedinte chamada Mary, uma prostituta chamada Antoinette ou uma condessa russa chamada Natalia. O beijo não é dela, mas foi ela que o deu. A boca é dela, mas está vinculada a um contrato, a um guião, a uma direcção de actores que manda beijar mais assim e menos assim, ao trabalho de encarnar uma enfermeira (ou uma condessa russa) de quem vestiu a pele durante semanas.

De quem é o desejo? Que memórias guardamos de uma primeira experiência forte em que não somos nós que lá estamos, mas o personagem para o qual fomos contratados? E para que serve pensar nisso?

***

Contam-me que um rapaz filho de gente que conheço não quis continuar o namoro porque ela era - ou queria ser - actriz. Não sei exactamente os motivos, mas posso adivinhar alguns. Ontem, ao cruzar-me fugazmente e a uma hora tardia com uma séria que passa na SIC (e que ostenta um círculo encarnado no canto superior direito do ecrã) veio-me à memória este texto. A série a que me refiro gira à volta de um clube nocturno de prostituição de classe, tocando também (presumo eu, pelos 10 minutos que vi) em problemas de máfias de leste e tráfico de raparigas. 

Vamos supor, para simplificação do argumento, que a minha namorada é actriz, entra nesta série num papel de prostituta que se chama Cláudia (também podia ser Maria, ou Paula, ou Natália). Enquanto actriz já tinha entrado noutras séries mais juvenis, e já tinha beijado outros rapazes. Quando chega a casa dá-me um beijo apaixonado e diz-me que quem beija na televisão é a actriz, não a minha namorada - o beijo que ela dá é um beijo profissional, não um beijo afectivo. Num certo sentido segue a linha do beijo de Elizabeth Taylor. Então, corroído de ciúmes, falo-lhe nas cenas eróticas, ousadas, sensuais, e ela responde-me, toda cheia de calma e paciência: viste o meu corpo? Viste-me nua? Viste o cliente a tocar-me? Não percebes que é um duplo que faz aquilo? Eu estou ao lado, a assistir. É outra pessoa que faz aquilo em meu lugar...

A minha namorada é actriz, e numa das cenas beija um cliente com quem segue para um hotel. É ela que beija, pois eu identifico-a bem. Depois seguem para o quarto para uma noite tórrida de sexo; durante 10 minutos vejo corpos, mas não vejo caras. Há erotismo, toques, mãos sensuais e ávidas. A minha namorada diz-me que não é ela, que é a Solange, brasileira contratada para o efeito que se sente à vontade nessas cenas. Eu digo-lhe que acredito, mas que mesmo assim...

JdB

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