19 novembro 2021

Dos acasos *

“Não há, portanto, razão nenhuma para censurar aos romances o seu fascínio pelos misteriosos cruzamentos do acaso... mas há boas razões para censurar o homem por ser cego a esses acasos na sua vida quotidiana e assim privar a vida da sua dimensão de beleza”.

(Milan Kundera in A Insustentável Leveza do Ser)

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Em 1754, o inglês Horace Walpole escrevia The Three Princes of Serendip, uma história baseada num conto infantil persa. Três príncipes do Ceilão fazem constantemente descobertas inesperadas cujos resultados, na realidade, não procuravam. Com isso encontravam acidentalmente a solução para dilemas impensados. Nasceu aqui a palavra serendipidade (do inglês serendipity) que o dicionário define como característica de quem faz boas descobertas por acaso ou atrai o acontecimento de coisas favoráveis

Pego nas Confissões. Em VIII, XII, 28, Santo Agostinho fala da sua conversão. Cito: Dizia isto e chorava com a contrição amaríssima do meu coração. E eis que ouço uma voz vinda da casa ao lado, como o canto de alguém, não sei se menino ou menina, que dizia e repetia muitas vezes: “Toma, lê, toma, lê.” Agostinho pega no códice do Apóstolo e lê o que os seus olhos viram em primeiro lugar: Nem em comezainas e bebedeiras, nem em libertinagem e dissoluções... (Romanos, 13:13-14). A vida do bispo de Hipona e doutor da Igreja estava traçada. 

Que relação temos nós com os acasos da vida? Que encantos lhes descortinamos ou, mais arrojadamente, como os enquadramos nós na nossa forma de viver? Tudo o que nos acontece afortunadamente é sorte e cálculo de probabilidades? Ou há momentos na nossa vida em que nos apercebemos de uma profusão maior de acasos favoráveis - a que Jung chamava sincronicidades? 

A minha resposta é a minha convicção. Atribui-se a Einstein a frase: a coincidência é a forma que Deus tem de permanecer anónimo. Olho para trás, para a publicação do meu único livro (em co-autoria com a Rita Jonet). Tudo – mas rigorosamente tudo – envolvido na publicação do Deus pregou-me uma partida é uma sucessão tremenda de acasos que se conjugaram para que o livro visse a luz do dia e tocasse alguma pessoas. Sorte? Cito ainda Einstein: Deus não joga aos dados

Gosto de encontrar acasos na minha vida: saber que foi determinante para a minha caminhada ter estado em tal sítio a tal hora; perceber que de um encontro fortuito se fazem amizades estruturantes; encontrar um livro que se leu dez anos antes e cuja importância decisiva para vencer um desgosto profundo só agora se descortina; cruzar-me com uma frase e perceber que ela limpa a minha mente de dúvidas ou erros; encontrar relações acidentais entre datas, locais, pessoas; ouvir uma música inesperada num momento de turbulência e realizar que ela me leva para uma memória que é um refúgio. 

Sou um homem feliz porque tenho muitos acasos, ou a felicidade advém de os conseguir encontrar na minha vida? 

Os que faziam do latim a sua língua chamavam-lhe apertio libri – abertura do livro.  Os antigos faziam-no com os textos de Homero ou de Virgílio – textos pagãos: abriam ao acaso e liam uma frase para discorrerem qualquer coisa. A expressão sortilégio – escolha de sortes – vem daí. Santo Agostinho fez a sortes sanctorum, porque procurou o seu caminho num texto bíblico. A nós, que não somos santos nem muito antigos nem escrevemos em latim, resta-nos olhar para a vida e para a beleza dos acasos favoráveis. Talvez, porque não, pensar no riso de Deus por trás do seu aparente anonimato... 


JdB

* publicado originalmente em 30 de Abril de 2014

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