23 fevereiro 2022

Textos dos dias que correm

A crença em Deus assenta em o que podemos chamar um acto de fé racional.

A crença em Deus assenta em o que podemos chamar um acto de fé racional. Consciente ou inconscientemente, o movimento do espírito é este: (1) Tudo quanto existe é efeito de uma causa; o universo existe; portanto o universo é efeito de uma causa. (2) O efeito não pode conter mais que o que está contido na causa, (pois então seria efeito de mais causas que uma); o universo, no mais alto ponto em que nós o conhecemos, que é o homem, contém a consciência; portanto a causa do universo deve conter a consciência, isto é, deve ser uma Causa consciente. (3) O efeito não pode conter tudo quanto se contém na causa, pois então seria idêntico à causa, e não haveria causa nem efeito; o universo é múltiplo, extenso (no tempo e no espaço, ou no espaço-tempo) e diverso (isto é, composto de coisas não só muitas mas diferentes entre si); portanto a causa do universo tem que conter mais que multiplicidade, ou seja totalidade, mais que extensão, ou seja infinidade, mais que diversidade, ou seja plenitude. Cumpre advertir que totalidade se diferencia de plenitude em que o primeiro é um conceito quantitativo, o segundo qualitativo: assim a totalidade do prazer seria a soma de todos os prazeres possíveis, a plenitude do prazer a concentração em um só prazer do que se acha contido na diversidade de todos.

Por qualquer especulação desta ordem, em geral subconsciente ou instintiva, chega o homem à crença racional na existência de Deus. Que é racional, já o vimos, não esqueçamos porém que é simples crença, pois parte de princípios naturais, instintivos, mas dialecticamente contestáveis.

Organizado, como é, o espírito do homem, não há demonstrações senão a científica, isto é, a que se baseia ou na observação, ou na experimentação, ou no cálculo, ou em qualquer combinação destas três coisas. Ora, ainda admitindo que o conceito de causa e efeito seja induzível da observação (o que é contestável e, de facto, tem sido contestado), o que é certo é que o que chamamos universo em seu «conjunto» não é susceptível de observação, de experimentação ou de cálculo, pois não temos sentido algum com que o abranjamos, nem sabemos, portanto, o que em esse «conjunto» (e já conjunto é hipótese) o universo seja.

A existência de Deus é, pois, indemonstrável, mas é um acto de fé racional, natural portanto — inevitável até — em qualquer homem no uso da sua plena razão.

E tanto assim é que o ateísmo anda sempre ligado a duas qualidades mentais negativas — a incapacidade de pensamento abstracto e a deficiência de imaginação racional. Por isso, nunca houve grande filósofo ou grande poeta que fosse ateu.

Indemonstrabilidade dos dados dos sentidos — a crença que temos na realidade objectiva do universo é um acto de fé sensual. A ciência mostra a que leis obedecem os seres que povoam esse universo aparentemente objectivo; não demonstra, nem pode demonstrar que essa objectividade seja mais que aparente, que o mundo não seja sonho e ilusão. Num caso há um acto de fé logicamente injustificável, na validade da razão; no outro um acto de fé, igualmente injustificável, na validade dos sentidos. É bom que o ateu saiba que, se o teísta pratica uma imprudência lógica ao ocultar a existência de Deus, o ateu a pratica igual ao ocultar a existência de uma pedra, entendendo eu, por este segundo termo, a imaginação que sabe figurar-se «entes» despidos de todos os atributos.

1915?

Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968. 

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