A UCRÂNIA ACORDOU A EUROPA
A democracia ressoou com uma vitalidade espantosa por toda a Europa, desde que as tropas de Putin se precipitaram sobre o país vizinho, à revelia dos acordos internacionais que permitem a coabitação pacífica dos povos. Quando os tanques russos violaram as linhas fronteiriças, os relógios ucranianos marcavam as 5h05 da madrugada de Quinta-feira, 24 de Fevereiro. Aconteceu um par de dias depois do encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno, decorridos em Pequim, e antes de o degelo começar a atrapalhar o avanço dos tanques por caminhos transformados em lamaçais.
Apesar da saraivada de notícias sobre a militarização junto à fronteira com a Ucrânia, em crescendo desde Novembro, o Ocidente acordou sobressaltado com a perfídia do ataque russo em três frentes simultâneas e distantes entre si. Foi muito além do esperado assalto às repúblicas ditas separatistas, pelo que nem os piores cenários traçados pelos media tinham previsto uma invasão tão descaradamente extensa.
A desculpa esfarrapada de que os governados de Kiev eram neo-nazis e toxicodependentes caiu no ridículo, pois rapidamente se ficou a saber que vários dirigentes ucranianos eram judeus dos quatro costados, como o presidente Zelenskyy, que ficará para a história como um herói de guerra. Esperemos que não venha a ser também um mártir. A segunda mentira, de que a Rússia se propunha repor a paz na Ucrânia, perdeu razão de ser face à revolta generalizada e frontal da população invadida, que não se reconhece como “irmã” do povo russo, a menos que se trate de violência doméstica inaceitável. A firmeza e bravura da reacção ucraniana depressa criou rastilho no Ocidente.
Adiantando-se aos governantes, foram as multidões aos milhares que encheram as ruas em protesto contra a beligerância do Kremlin. Assim pressionaram os Governos a adoptarem medidas verdadeiramente penalizantes contra um agressor sem escrúpulos, disposto a impor-se pela força bruta e primitiva das armas.
No Vaticano, o Papa Francisco rompeu o protocolo e deu um passo inédito ao dirigir-se, pelo seu pé, à Embaixada da Rússia acreditada junto da Santa Sé, para pedir o cessar-fogo e uma solução pacífica imediata.
A Suíça afirmou-se disposta a romper a tradição de neutralidade bélica para auxiliar o povo ucraniano.
No mundo da cultura também se terçaram armas pelos invadidos e o famoso maestro russo Valery Gergiev, amigo de Putin mas de qualidade musical superlativa, viu cancelada a generalidade dos compromissos com as melhores salas de concerto do Ocidente, onde era presença assídua. O Carnegie Hall de Nova Iorque marcou logo posição. Seguiu-se Roterdão. Munique despediu-o de Maestro Principal da sua Filarmónica. No Scala, onde o maestro regia (com sucesso) uma ópera de Tchaikovsky, a manifestação popular junto da sala de ópera de Milão, levou os responsáveis a instar Georgiev a enviar uma carta de condenação da beligerância do Kremlin. Face ao seu silêncio ensurdecedor, a sua agenda de eventos foi cancelada.
Na Polónia, que se tem recusado a receber refugiados em geral, a população mobilizou-se espontaneamente para ir recolher ucranianos à fronteira. Foi tal a adesão, que as autoridades tiveram de desentupir o trânsito que ficou logo congestionado na zona da raia, para permitir que a generosidade polaca pudesse continuar a salvar o maior número possível de vidas ucranianas.
Também do lado russo se assistiu a alguns actos heróicos, com risco de vida, a começar pela manifestação no coração de Moscovo, dispersada com violência e prisões. Na Bienal de Veneza, os artistas e o curador do pavilhão russo recusaram-se a representar o seu país, enquanto a invasão continuar. Nas manifestações pela Europa fora, alguns têm mostrado cartazes a pedir desculpa pela ofensiva do seu país, com uma frontalidade e uma coragem à russa.
Noticiado no JAPAN ASIA TIMES de 28.FEV.2022. |
A fotografia do russo com o cartaz foi tirada numa manifestação anti-Putin, na Geórgia, e divulgada no tweet do Eurodeputado polaco Radek Sikorski. |
Em 1987, o grupo de rock britânico Barclay James Harvest lançou uma música profética para os tempos de hoje «KIEV», num videoclip que oferece uma visita virtual pela majestosa capital ucraniana. A ária integrou o álbum Face to Face, dos rockers que conseguiram a proeza de ser os primeiros a dar um concerto em Berlim oriental (1987), dois anos antes da queda do muro. Ficou conhecido como «Concert for the People» e foi autorizado pelos comunistas para atrair turistas, pois comemoravam-se os 750 anos da cidade. Nesse ano, KIEV chorava o desastre nuclear de Chernobyl, provocado pela má qualidade das infraestruturas soviéticas, geridas a partir de Moscovo e mantidas com repressão brutal. Era o modo de esconder a clamorosa incapacidade tecnológica para gerir equipamentos sofisticados. Mas lembram os ucranianos que Chernobyl foi só o segundo grande horror inflingido pelos russos, depois do “holomodor” do período estalinista, que matou 12 milhões à fome. A ária é bem conhecida por cá, porque também foi integrada no repertório sacro-pop dos coros acompanhados à viola:
Diz tudo, o facto de as sociedades mais críticas deste perigoso ataque provirem dos países da Cortina de Ferro. São a prova viva do trauma causado pelo totalitarismo bolchevique, de que ainda guardam memória fresca, mais de 30 anos volvidos. Durante o jugo soviético, a instituição mais odiosa do mundo comunista era a polícia política, onde Vladimir Putin fez carreira. Curiosamente, na noite em que teve início a derrocada do muro de Berlim, encontrava-se na capital alemã, a assessorar a temível Stasi. Adivinhe-se para que lado as pessoas fugiram, aos magotes?
Quarenta anos depois, os sons dos Barclay James Harvest renascem proféticos para fazer jus à história de um país martirizado, ao mesmo tempo que lembram às democracias como a chama da liberdade é uma vela frágil, que precisa de ser defendida(1). O muito glosado poema composto por um pastor luterano alemão para denunciar o nazismo, explica-o com argúcia e boa dose de realismo: «First they came for the socialists, and I did not speak out— Because I was not a socialist. Then they came for the trade unionists, and I did not speak out— Because I was not a trade unionist. Then they came for the Jews, and I did not speak out— Because I was not a Jew. Then they came for me—and there was no one left to speak for me.» [de Martin Niemöller]
A possibilidade de esta música nostálgica nos instigar a contribuir para a restauração de tudo o que possa ser arrasado na Ucrânia abre a possibilidade de a vida prevalecer sobre a morte, sobre o ódio e a voragem. Por isso, apetece cantá-la aos quatro ventos, como recomendam os fãs – let's play KIEV loud now.
Para quem é crente, não é preciso lembrar que a hora pede oração, e que gostaríamos de ser atendidos antes que demasiado sangue seja derramado e as maiores loucuras sejam cometidas… pois o desespero não costuma ser bom conselheiro, menos ainda de megalómanos. Precisamente, hoje, o Papa Francisco pediu um dia de jejum e de oração pelo fim da guerra na Ucrânia. É um bom arranque para uma Quaresma, já indissociavelmente ligada aos desafios concretos do nosso tempo. Talvez possa ficar para a história por boas razões... Tenhamos nós fé para nos apoiarmos na força imensa que vem de rezarmos juntos, numa hora que também pede um verdadeiro ecumenismo!
Na Ucrânia, todos lutam, cada um com os recursos que tem. Esta idosa confia no poder da oração. |
Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)
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(1) Letra de KIEV, dos Barclay James Harvest:
But now the whole world's watching you
If we could help you then you know we would
But we don't know just what to do
Eye to eye our ways are not the same
We never tried to understand
But it could pass to each of us you name
Then who's the one to take the blame
Kiev, a candle with a flame
You'll never be the same
Our hearts go out to you
And what you're going through
They've thrown away your past
Just like an empty glass
Into the fire
Someone wiser took the Steppe from you
I'm sure with reason it was right
But now it seems the whole world's blaming you
And who's the one to put things right
Kiev, a candle with a flame
You'll never be the same
Our hearts go out to you
And what you're going through
They've thrown away your past
Just like an empty glass
Into the fire
Kiev, a candle with a flame
You'll never be the same
We all will understand
You're really not to blame
They've thrown away your past
Just like an empty glass
Into the fire Kiev.»
Lamento-a
ResponderEliminarMinha Senhora, o meu lamento é por ter andado a mostrar e a escrever coisas sem provas.
ResponderEliminarEu não me assarapanto com o que por lá se passa, nada tenho a ver com aquelas gentes nem com o que os praticantes da mentiram se encarregam de espalhar.
Pergunto tão só: quais foram as origens.
«Nunca se mente tanto como em véspera de eleições, durante a guerra e depois da caça»
Otto von Bismarck
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