A nossa tarefa: Viver e morrer como seres humanos
Nos últimos dias faleceram duas pessoas que marcaram a história do último século: Mikhail Gorbachev e Isabel II. Os meios de comunicação deram amplo destaque a estas notícias, percorrendo o arco temporal das duas biografias. Trata-se de pessoas que já entraram nos livros de História. Nestes manuais, com que todos nos cruzámos na nossa experiência escolar, estudam-se, com efeito, os “grandes” da História. Somos feitos assim, nós, humanos, precisamos de fazer classificações, de dar ordens de grandeza, de dividir o mundo em grandes e pequenos, poderosos e fracos, vencedores e derrotados, porque, para usar uma expressão do papa Francisco, estamos todos enclausurados dentro da «cultura do adjetivo», em vez de nos abrirmos à «teologia do substantivo».
Sabemos bem o quanto tudo isto, obviamente, é parcial, redutor, no fim de contas falso, mas é assim que andamos por diante, classificando e celebrando: é uma necessidade instintiva, que talvez nasça da insegurança, da consciência da nossa fragilidade. Sabemos por isso que o papa tem razão quando nos recorda – como também o fez a 20 de março de 2020, durante a “histórica” “Statio Orbis” na praça de S. Pedro, debaixo de chuva – que «as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns – habitualmente esquecidas – que não comparecem nos títulos dos jornais e das revistas nem das grandes passarelas do último espetáculo, mas que, sem dúvida, estão a escrever hoje os acontecimentos decisivos da nossa História», reevocando assim a intuição de Edith Stein, para quem «seguramente os acontecimentos decisivos da História do mundo foram essencialmente influenciados por almas sobre as quais nada vem dito nos livros de História».
É portanto a nossa desesperante fragilidade que nos conduz a recordar publicamente apenas os denominados «grandes», e por isso, nestes dias, recordamos Gorbachev e Isabel II. O primeiro encontrou muito menos espaço nos meios de comunicação em relação à segunda, apesar de ter sido um daqueles poucos homens que verdadeiramente mudou o curso da História. Constantino, Lutero… não são muitos aqueles de quem se possa dizer o mesmo, mas Gorbachev é um deles. Diferentemente, a rainha de Inglaterra que sobretudo acompanhou a História, coisa não menos fácil, durante todo um século, um período que talvez tenha sido o mais perturbador do ponto de vista das mudanças políticas, sociais, económicas, “existenciais”. Mudanças incríveis a uma incrível velocidade. Isabel foi testemunha de um vertiginoso reviramento social, e por isso o mundo da sua infância pouco tem a ver com o da sua velhice. A progressiva aceleração das transformações entre aquele 1926 em que nasceu e este 2022 é algo que toca e inquieta as consciências de todos. «Time is out of joint», dizia Hamlet, colhendo uma sensação comum: o tempo é louco, fora de controlo, fora “dos carris”.
Para onde se dirige a História? A um nível ainda mais radical, fundamental, a morte da rainha inglesa interpela-nos também porque a sua longevidade nos coloca perante o problema humano por excelência: o sentido do tempo e da sua finitude. Ao nascer contraímos uma doença mortal que chamamos vida, «this version of death called life», como canta Dylan. É verdade que a duração de Isabel nos toca e recorda-nos ao mesmo tempo que viver não é durar, que o tempo não pode ser só “krónos”, mas deve ser também “kairós”, «porque sem significado não há tempo» (Eliot).
Vem em nosso auxílio a palavra dos poetas, como este verso poderoso de Szymborska: «Não há vida que pelo menos por um instante não tenha sido imortal/ A morte chega sempre atrasada a esse instante». E então tentamos procurar esse instante e intuir o sentido destas duas mortes, a 30 de agosto Gorbachev e a 8 de setembro Isabel II, e encontrar assim um significado para a nossa.
Para o fazer podemos recorrer a uma terceira pessoa, encontrada morta a 23 de agosto, um homem sem um nome e sem um rosto (no sentido de que nunca foi fotografado ou retratado): o "índio do buraco". Dele fala de maneira tocante Raffaele Luise no recente livro “Amazónia. Viagem ao tempo do fim»: «No Estado de Rondônia move-se um índio isolado, só no mundo, último representante do seu povo, exterminado pela ditadura militar. […] Ameaçado por todos, foge de tudo […], vive a escavar buracos na terra, e por isso é chamado “índio do buraco”. Nestes buracos, diferentes todas as noites, abaixa-se para dormir, depois de ter fixado a rede e coberto a cavidade com um teto de madeira e folhas». Acomodado sobre aquela rede, foi encontrado a 23 de agosto, morto devido a causas naturais, coberto de penas. Nenhum sinal de violência física, nenhum rasto de incursão no terreno. Sozinho, como tinha vivido durante tantos longos anos.
Celebrar a vida deste índio seria cometer o mesmo erro daqueles livros de História nos quais ele talvez nunca entre. Não deve ter sido uma vida fácil, foi o último sobrevivente de um genocídio. Perante a violência do mundo escolheu fugir, escondendo-se. Se Isabel permaneceu dentro da História que vertiginosamente mudava diante dos seus olhos, o “índio do buraco” sepultou-se desde logo em vida, saiu da História para viver na fixidez da natureza, morrendo, como se deveria morrer, por causas naturais. Celebrar, por isso, não a sua vida mas a sua morte, o estilo como que a enfrentou, isto sim, isto talvez fosse acertado e apropriado. Da maneira como foi encontrado intui-se que acolheu a sua morte, não a sofreu. “Dispôs-se”, como exortava Santo Afonso Maria de Ligório, colocando-se a olhar o céu, o gesto mais humano de todos, e abandonou-se com fragilidade ao mistério do fim. Talvez tenha morrido libertado do medo; poderia dizer-se: morreu como um rei. E pode dar-se que tenha dito em alta voz, como a personagem Old Lodge Skins (inesquecível chefe índio do filme “O pequeno grande homem”): «Hoje é um belo dia para morrer». Quem sabe se, finalmente, terá encontrado a paz, mas a quem não agradaria repetir os seus gestos, pronunciar as suas palavras?
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado pelo SNPC em 13.09.2022
Não convém lembrar João Paulo II nem Ronald Reagan como pessoas que contribuíram, e muito, para a mudança no planeta.
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