Foi hoje, mas há 21 anos.
Há exactamente um ano publiquei aqui uma fotografia desta mesma criança - estava mais nova, sem cabelo, numa situação menos favorável, igualmente sorridente. Este ano, num texto de abertura para o Relatório Anual da Childhood Cancer International, escrevi:
Termino com uma nota pessoal: no ano passado referi-me à criança cuja fotografia ilustrou a capa do Relatório Anual acrescentando a seguinte legenda: «conheci a rapariga cuja fotografia está na capa uns dias antes de completar um ano, alguns dias antes de ser diagnosticada com um neuroblastoma. Acho que a cabeça sem cabelo e os olhos sorridentes são uma boa metáfora para o que move o CCI: desafio e esperança.'
A criança na capa deste Relatório Anual é a mesma do ano passado. Um ano depois ainda está connosco graças à ciência e aos profissionais de saúde, à sua própria força interior, ao amor dos seus pais e familiares. E à esperança.
Que se empoleira na alma
A cantar a melodia sem letra,
A cantá-la sem fim
Mesmo nos momentos mais sombrios, que possamos sempre guardar nos nossos corações essa coisa com penas de que Emily Dickinson falou.
***
Há dias a mãe de uma criança com cancro, cujo caso fui acompanhando, telefonou-me a partilhar boas notícias e a agradecer. Disse-lhe que nada havia feito, mas ela agradeceu na mesma o apoio e as orações. Cruzo-me com a avó que me vai dando notícias e que agradece o meu apoio e as orações. Não faço nada por estas crianças com cancro, sejam filhas ou netas de amigos, sejam filhas ou netas de pessoas que não conhecia. Dou o apoio possível e rezo o possível. Talvez o que me agradeçam seja a escuta e a certeza de que nos meus olhos se pode ler isto: sim, sei do que está a falar, já passei pelo mesmo. A minha experiência é fruto do azar; mas a minha escuta (incerta e volátil) é fruto do desafio que me vem de algum sítio, seguramente deste acontecimento de hoje, mas há 21 anos.
A minha vida levou-me a conhecer a comunidade da oncologia pediátrica com alguma proximidade: médicos, investigadores, psicólogos, assistentes sociais, pais, sobreviventes, profissionais. Não deixa de me espantar o que vejo: gente prestável, cordata, disponível, positiva, amiga, solidária, atenta ao próximo. Somos uma aldeia que se encarrega de tomar conta de uma criança doente, porque afinal, como diz a campanha da Acreditar o meu cancro não é só meu. Também é da minha família. O cancro numa criança não é só dela, mas da aldeia em que todos vivemos, onde se aprende a arte da escuta e do toque, onde a vulnerabilidade não é boa nem má, apenas humana. Pertencer a esta aldeia é um privilégio que espero merecer.
Há 21 anos aprendi que uma criança podia ter cancro. Há 21 anos aprendi a usar as duas palavras incompatíveis - cancro e criança - na mesma frase. Passados 21 anos não me habituo, nem me conformo. Mas também há 21 anos aprendi aquilo que não me canso de dizer aos outros: não interessa porque é que as coisas nos acontecem, mas o que fazemos com as coisas que nos acontecem. Isto é, que sentido damos a estes acontecimentos. Repetir o raciocínio não é exibir uma vaidade pateta, mas agradecer aos outros que oiçam o que queremos dizer a nós próprios.
***
Há 21 anos que a tua memória do que tu foste e és não me sai da cabeça nem da alma. Há 21 anos que vives em tudo o que faço por esta comunidade e em tudo o que esta comunidade faz por mim, e que é muito mais. Há 21 anos que és inspiração e desafio para que eu saiba sempre o que é importante, o que é determinante, o que não é mais do que espuma dos dias. Há 21 anos que és essa coisa com penas de que falava o poema.
J, em nome de todos os que te lembram
Abraço firme.
ResponderEliminaroliveira
Caro Oliveira,
ResponderEliminarUm abraço de presumida firmeza igual.