18 janeiro 2023

Vai um gin do Peter’s ?

A LUCIDEZ TRANQUILA DE BENTO XVI 

Há muitas histórias pessoais com Bento XVI, quase todas a sublinhar a sua timidez, enorme afabilidade, perfil reservado e de bondade cristalina, num conjunto incomum num académico tão brilhante. A escolha da concha no seu brasão papal espelha a combinação rara de humildade num homem sumamente inteligente, aludindo à lenda do santo que mais o inspirou – Santo Agostinho. Este teria encontrado uma criança na praia a levar a água do mar, numa concha, para a uma concavidade escavada na areia. Quando Agostinho perguntou ao miúdo o sentido daquela azáfama inglória, este confirmou-lhe a pior suspeita: queria transferir o Mediterrâneo para a covinha. Volvido o primeiro embate, o Bispo de Hipona percebeu quanto o intento sem nexo se aplicava à sua insistência em esmifrar os mais impenetráveis mistérios de Deus, em especial o da Santíssima Trindade. Sem explicar quais terão sido as suas possíveis ousadias irrealistas, Ratzinger ficou ligado à concha que teria dado a Agostinho a noção dos limites do conhecimento humano. Por junto, identificava-se com a sede daquele santo em compreender tudo aquilo em que acreditava, no fundo, valorizando a importância da razão para iluminar a fé, e vice-versa.      

 

Brasão de Bento XVI

Quando Ratzinger representou a Santa Sé, no 60º aniversário do Desembarque da Normandia (2004), na sua extrema modéstia, acabou esquecido na praia, juntamente com o Cardeal de Paris, Lustiger. Acabaram por ser transportados numa carrinha pão-de-forma da polícia para voltarem à cerimónia oficial! Impressionou a sua bonomia, muito condescendente com aquela gaffe protocolar, que alguns franceses quiseram atribuir à possível francofilia do alemão. 

A repórter do Paris Match para as temáticas religiosas, Caroline Pigozzi, conta como interpelou o então Cardeal Ratzinger, mal o avistou na Praça de S.Pedro. No final da conversa, a jornalista perguntou-lhe as horas, ficando espantada com o tamanho minúsculo do relógio, que comentou com o seu interlocutor. E este segredou-lhe que tinha pertencido à sua irmã Maria, acrescentando: «As horas são importantes… Nunca sabemos, quando seremos chamados pelo Senhor.» 

Diz-se que poucas coisas irritavam tanto Bento XVI como a superficialidade frívola e ignorante, retorquindo que: «tudo tem uma razão de ser e não existe apenas “porque sim”!»  Indo mais longe, por acreditar na sagacidade que a fé confere ao olhar do crente que não limita o universo à matéria, lembrava que o Cristianismo é «sal», e não «açúcar»

No meio dos seus incontáveis escritos e intervenções, é difícil escolher uma pequena amostra das muitas mensagens lapidares que deixou para a posteridade. Seguem algumas: 

MAL & MIRAGENS DO MUNDO 

- «The world offers you comfort. But you were not made for comfort. You were made for greatness»

- «Se ao progresso técnico não corresponde um progresso na formação ética do homem, no crescimento do homem interior (cf. Ef 3,16; 2 Cor 4,16), então aquele não é um progresso, mas uma ameaça para o homem e para o mundo.»

- «Evil draws its power from indecision and concern for what other people think.»

- «Wherever politics tries to be redemptive, it is promising too much. Where it wishes to do the work of God, it becomes not divine, but demonic.»

- «The State which would provide everything, absorbing everything into itself, would ultimately become a mere bureaucracy incapable of guaranteeing the very thing which the suffering person—every person—needs: namely, loving personal concern. We do not need a State which regulates and controls everything, but a State which, in accordance with the principle of subsidiarity, generously acknowledges and supports initiatives arising from the different social forces and combines spontaneity with closeness to those in need. The Church is one of those living forces.” -  na Carta-Encíclica «Deus é Amor».

- «It is when we attempt to avoid suffering by withdrawing from anything that might involve hurt, when we try to spare ourselves the effort and pain of pursuing truth, love, and goodness, that we drift into a life of emptiness, in which there may be almost no pain, but the dark sensation of meaninglessness and abandonment is all the greater.»

- O homem tem um desejo natural de se encontrar com o infinito, com «um além que lhe traga doçura», por outro lado, facilmente cede a «uma espécie de mística anónima» que dá um pouco de alívio, mas não exige um compromisso pessoal. Sem uma resposta individual, fica «uma coisa vazia» e termina-se «na prisão do eu».

TERROR DO NAZISMO NA ORIGEM DA SUA ESCOLHA VOCACIONAL: «Na fé dos meus pais tive a confirmação do catolicismo como um bastião da verdade e da justiça contra aquele reino do ateísmo e da mentira, que o nacional-socialismo encarnou.» 

SOBRE O TERRORISMO: «(revela o) problema do abuso do nome de Deus, em nome de uma religião politizada e tão subserviente ao poder que se torna um fator de poder. (…) (O rosto de Cristo é o de um Deus) que sofre por nós e não usa a omnipotência para regular as realidades do mundo com um golpe de poder, mas vai ao nosso coração e a um amor que chega a morrer por nós.»

NOVIDADE DE CRISTO – O AMOR

- «If you follow the will of God, you know that in spite of all the terrible things that happen to you, you will never lose a final refuge. You know that the foundation of the world is love, so that even when no human being can or will help you, you may go on, trusting in the One that loves you.» – in «Spe Salvi»

- «Seeing with the eyes of Christ, I can give to others much more than their outward necessities; I can give them the look of love which they crave.»

- «Love is the only force capable of changing the heart of the human person and of all humanity, by making fruitful the relations between men and women, between rich and poor, between cultures and civilizations.» – in Mensagem para o 22º Dia Mundial da Paz, a 1.ABR.2007

ESPERANÇA E LIBERDADE

- «To have Christian hope means to know about evil and yet to go to meet the future with confidence. The core of faith rests upon accepting being loved by God, and therefore to believe is to say Yes, not only to him, but to creation, to creatures, above all, to men, to try to see the image of God in each person and thereby to become a lover. That's not easy, but the basic Yes, the conviction that God has created men, that he stands behind them, that they aren't simply negative, gives love a reference point that enables it to ground hope on the basis of faith.»

- «One who has hope lives differently.»

- «Dear friends, may no adversity paralyze you. Be afraid neither of the world, nor of the future, nor of your weakness. The Lord has allowed you to live in this moment of history so that, by your faith, his name will continue to resound throughout the world.»

- «Are we not perhaps all afraid in some way? If we let Christ enter fully into our lives, if we open ourselves totally to him, are we not afraid that He might take something away from us? (…) No! If we let Christ into our lives, we lose absolutely nothing of what makes life free, beautiful and great. No! Only in this friendship are the doors of life opened wide. Only in this friendship is the great potential of human existence truly revealed. Only in this friendship do we experience beauty and liberation. (…)  Do not be afraid of Christ! He takes nothing away, and he gives you everything. When we give ourselves to him, we receive a hundredfold in return. Yes, open, open wide the doors to Christ – and you will find true life. »

VERDADE – acessível? 

- «La vérité ne peut être connue et vécue que dans la liberté, c’est pourquoi nous ne pouvons pas imposer la vérité à l’autre: la vérité se dévoile seulement dans la rencontre d’amour.» – in visita ao Líbano, em SET.2012, na sequência da exortação apostólica pós-sinodal para o Médio Oriente

- «In the course of my intellectual life I experienced very acutely the problem of whether it isn't actually presumptuous to say that we can know the truth - in the face of all our limitations. I also asked myself to what extent it might not be better to suppress this category. In pursuing this question, however, I was able to observe and also to grasp that relinquishing truth doesn't solve anything but, on the contrary, leads to the tyranny of caprice. In that case, the only thing that can remain is really what we decide on and can replace at will. Man is degraded if he can't know truth, if everything, in the final analysis, is just the product of an individual or collective decision.  In this way it became clear to me how important it is that we don't lose the concept of truth, in spite of the menaces and perils that it doubtless carries with it. It has to remain as a central category. As a demand on us that doesn't give us rights but requires, on the contrary, our humility and our obedience and can lead us to the common path.»

- «Truth is not determined by a majority vote.»

- «Jesus has brought God and with God the truth about our origin and destiny: faith, hope and love. It is only because of our hardness of heart that we think this is too little. Yes indeed, God's power works quietly in this world (…). Yet over and over again it proves to be the thing that truly endures and saves.» ― in «Jesus of Nazareth: From the Baptism in the Jordan to the Transfiguration» 

- «Knowing is not simply a material act, since the object that is known always conceals something beyond the empirical datum. All our knowledge, even the most simple, is always a minor miracle, since it can never be fully explained by the material instruments that we apply to it. In every truth there is something more than we would have expected, in the love that we receive there is always an element that surprises us.” – in «Charity in Truth: Caritas in Veritate»

- «Purity of heart is what enables us to see.»

SER HUMANO 

- «We are not some casual and meaningless product of evolution. Each of us is the result of a thought of God.»

- «Each of us is the result of a thought of God. Each of us is willed. Each of us is loved. Each of us is necessary.»

- «The human person finds his perfection in seeking and loving what is true and good.»

IMPORTÂNCIA DA ALEGRIA 

- «Joy today is increasingly saddled with moral and ideological burdens, so to speak. When someone rejoices, he is afraid of offending against solidarity with the many people who suffer. (…) I can understand that. There is a moral attitude at work here. But this attitude is nonetheless wrong. The loss of joy does not make the world better - and, conversely, refusing joy for the sake of suffering does not help those who suffer. The contrary is true. The world needs people who discover the good, who rejoice in it and thereby derive the impetus and courage to do good. Joy, then, does not break with solidarity. When it is the right kind of joy, when it is not egotistic, when it comes from the perception of the good (…).In this connection, it always strikes me that in the poor neighborhoods of, say, South America, one sees many more laughing happy people than among us. Obviously, despite all their misery, they still have the perception of the good to which they cling and in which they can find encouragement and strength. In this sense we have a new need for that primordial trust which ultimately only faith can give. That the world is basically good, that God is there and is good. That it is good to live and to be a human being. This results, then, in the courage to rejoice, which in turn becomes commitment to making sure that other people, too, can rejoice and receive good news.”

IMPORTÂNCIA DO DESCANSO

- «É particularmente urgente no nosso tempo lembrar que o dia do Senhor é também o dia de repouso do trabalho. Desejamos vivamente que isto mesmo seja reconhecido também pela sociedade civil, de modo que se possa ficar livre das obrigações laborais sem ser penalizado por isso. De facto, os cristãos (…)viram no dia do Senhor também o dia de repouso da fadiga quotidiana. Isto possui um significado bem preciso, ou seja, constitui uma relativização do trabalho, que tem por finalidade o homem: o trabalho é para o homem e não o homem para o trabalho.

É fácil intuir a tutela que isto oferece ao próprio homem, ficando assim emancipado duma possível forma de escravidão. (…) É indispensável que o homem não se deixe escravizar pelo trabalho, que não o idolatre, pretendendo achar nele o sentido último e definitivo da vida. É no dia consagrado a Deus que o homem compreende o sentido da sua existência e também do trabalho.»

- «Os discípulos colocaram a Jesus o problema do stress e do descanso. Os discípulos regressavam da primeira missão, muito entusiasmados com a experiência e com os resultados obtidos. Não paravam de falar sobre os êxitos conseguidos. Com efeito, o movimento era tanto que nem tinham tempo para comer, com muitas pessoas à sua volta. Talvez esperassem ouvir algum elogio por tanto zelo apostólico. Mas Jesus, em vez disso, convida-os a um lugar deserto, para estarem a sós e descansarem um pouco.

Creio que nos faz bem observar neste acontecimento a humanidade de Jesus. A sua acção não dizia só palavras de grandeza sublime, nem se afadigava ininterruptamente por atender todos os que vinham ao seu encontro. Consigo imaginar o seu rosto ao pronunciar estas palavras. Enquanto os apóstolos se esforçavam cheios de coragem e importância que até se esqueciam de comer, Jesus tira-os das nuvens. Venham descansar! Sente-se um humor silencioso, uma ironia amigável, com que Jesus os traz para terra firme. Justamente nesta humanidade de Jesus torna-se visível a divindade, torna-se perceptível como Deus é. A agitação de qualquer espécie, mesmo a agitação religiosa não condiz com a visão do homem do Novo Testamento. 

Sempre que pensamos que somos insubstituíveis; sempre que pensamos que o mundo e a Igreja dependem do nosso fazer, sobrestimamo-nos. Ser capaz de parar é um acto de autêntica humildade e de honradez criativa; reconhecer os nossos limites; dar espaço para respirar e para descansar como é próprio da criatura humana. Não desejo tecer louvores à preguiça, mas contribuir para a revisão do catálogo de virtudes, tal como se desenvolveu no mundo ocidental, onde trabalhar parece ser a única atitude digna. Olhar, contemplar, o recolhimento, o silêncio parecem inadmissíveis, ou pelo menos precisam de uma explicação. Assim se atrofiam algumas faculdades essenciais do ser humano. O nosso frenesim à volta dos tempos livres, mostra que é assim. Muitas vezes isso significa apenas uma mudança de palco. Muitos não se sentiriam bem se não se envolvessem de novo num ambiente massificado e agitado, do qual, supostamente, desejavam fugir. Seria bom para nós, que continuamente vivemos num mundo artificial fabricado por nós, deixar tudo isso e procurarmos o contacto com a natureza em estado puro. 

Desejaria mencionar um pequeno acontecimento que João Paulo II contou durante o retiro que pregou para Paulo VI, quando ainda era Cardeal. Falou duma conversa que teve com um cientista, um extraordinário investigador e um excelente homem, que lhe dizia: "Do ponto de vista da ciência, sou um ateu...". Mas o mesmo homem escrevia-lhe depois: "Cada vez que me encontro com a majestade da natureza, com as montanhas, sinto que Ele existe". Voltamos a afirmar que no mundo artificial fabricado por nós, Deus não aparece. Por isso, temos necessidade de sair da nossa agitação e procurar o ar da criação, para O podermos contactar e nos encontrarmos a nós mesmos.» - in «Esplendor da Glória de Deus», p.161, 2007.

INTERVENÇÃO EM AUSCHWITZ (2006)

«O papa João Paulo II veio aqui como filho daquele povo que, ao lado do povo judeu, teve que sofrer mais neste lugar e, em geral, durante a guerra. Hoje eu vim aqui como um filho do povo alemão, e precisamente por isto devo e posso dizer como ele: não podia deixar de vir aqui. Tinha que vir. Era e é um dever perante a verdade e o direito de quantos sofreram, um dever diante de Deus, de estar aqui como sucessor de João Paulo II e como filho do povo alemão filho daquele povo sobre o qual um grupo de criminosos alcançou o poder com promessas falsas, em nome de perspetivas de grandeza, de recuperação da honra da nação e da sua relevância, com previsões de bem-estar e também com a força do terror e da intimidação, e assim o nosso povo pôde ser usado e abusado como instrumento da sua vontade de destruição e de domínio. Sim, não podia deixar de vir aqui.

O nosso grito a Deus deve ao mesmo tempo ser um grito que penetra o nosso próprio coração, para que desperte em nós a presença escondida de Deus para que aquele seu poder que Ele depositou nos nossos corações não seja coberto e sufocado em nós pela lama do egoísmo, do medo dos homens, da indiferença e do oportunismo.

Quantas perguntas surgem neste lugar! Sobressai sempre de novo a pergunta: onde estava Deus naqueles dias? Por que se silenciou Ele? Como pôde tolerar este excesso de destruição, este triunfo do mal? Vêm à nossa mente as palavras do Salmo 44, a lamentação de Israel que sofre: "... Tu nos esmagaste na região das feras e nos envolveste em profundas trevas... por causa de ti, estamos todos os dias expostos à morte; tratam-nos como ovelhas para o matadouro. Desperta, Senhor, por que dormes? Desperta e não nos rejeites para sempre! Por que escondes a tua face e te esqueces da nossa miséria e tribulação? A nossa alma está prostrada no pó, e o nosso corpo colado à terra. Levanta-te! Vem em nosso auxílio; salva-nos, pela tua bondade!" (Sl 44, 20.23-27). Este grito de angústia que Israel sofredor eleva a Deus em períodos de extrema tribulação, é ao mesmo tempo um grito de ajuda de todos os que, ao longo da história ontem, hoje e amanhã sofrem por amor de Deus, por amor da verdade e do bem; e há muitos, também hoje.»

O Papa que, num local de extrema crueldade (Auschwitz-Birkenau, na presença de sobreviventes judeus), interpela Deus perguntando-Lhe onde estava, confirma quanto a fé pode aguçar a atenção ao próximo e dar coragem para se ser porta-voz do que mais aflige a humanidade. Compreensivelmente, tornou-se numa magna oração sobre o sofrimento e o perigo das derivas totalitárias.  

Maria Zarco
(a preparar o próximo gin tónico, para daqui a 2 semanas)

 

1 comentário:

  1. MZ,
    um muito bom trabalho que, para mais, mostra o que tem estudado acerca de Ratzinger. Não se estuda para o nada, nem para nada...

    Grato,
    ao

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