Sexta-feira fui a uma vigília de oração quase toda voltada para as melhoras de uma pessoa que é importante numa determinada comunidade e que, muito antes de ser estatisticamente provável, se debate com uma condição de saúde grave. Ontem, numa esplanada com gente que me é próxima, ouvi uma frase: fulano (sendo que fulano tem mais ou menos a minha idade, 57 anos) disse-me que os último velórios a que a foi eram de gente da idade dele. E ouvi ainda: temos de aproveitar enquanto cá estamos. 6ª feira ainda fui a uma missa de corpo presente da irmã de alguém de quem sou amigo recente. Morreu de cancro, com 58 anos, talvez. Na minha ronda habitual de blogues, alguém cita o livro Amores Perros: se queres pôr Deus a rir, conta-lhe os teus projectos.
Como já aqui escrevi várias vezes, a fronteira entre a graça e a desgraça é um fio de cabelo. Na sequência de uma análise médica faz-se um simples telefonema, e no destinatário tudo se desmorona; noutros tempos não tão tecnológicos, a diferença entre uma gravidez alegre e um filho com deficiências mentais profunda é um instante. Por outro lado, a fronteira entre a desgraça e a graça é, também, um fio de cabelo: os que perdem ou optam por apanhar um avião que não o que se desmorona; os que perdem o emprego e, com isso, descobrem uma vocação - ou a coragem para a seguir.
Significa a frase dos projectos e do riso de Deus que não os devemos fazer? Não, não significa. O agricultor é o gestor sem uma folha de cálculo. Ambos projectam com base naquilo que sabem, com base naquilo que prevêem, com base naquilo que desejam. Projectar é acreditar; semear é acreditar. Viver é acreditar, sabendo que o mundo não é um lugar justo, que é, por vezes, um local profundamente injusto. Mas projectamos - uma sementeira, uma casa, um negócio, um projecto de vida. Projectamos, sabendo que tudo se esboroa nuns marcadores traiçoeiros, numa geada a destempo, num financiamento que não entra. Projectamos porque acreditamos.
As mortes prematuras (pelo menos estatisticamente prematuras) devem fazer-nos pensar. Nos hábitos que devemos perder - o sedentarismo, o cigarro, o álcool em excesso, o peso - mas, acima de tudo, na precariedade da vida relacional. Hoje estamos aqui, amanhã somos pó, porque há o carro em contra-mão, a paragem súbita e irreversível do coração, o avião que embate nas rochas. O que devemos aproveitar? O tempo para deixarmos um mundo melhor do que aquele que encontrámos. Fazer o caminho que nos resta - um minuto, um mês, um ano, um século - sem zangas, sem incompatibilidades, sem lutas desnecessárias, sem rancores nem orgulhos, sem implicações gratuitas. Estar e não estar é obra de um instante. Saber aproveitar esse espaço de tempo indefinido, improjectável, é um desafio. Acreditar é agarrar o futuro e moldá-lo para o bem.
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A primeira notícia sobre o desastre aéreo dos Alpes é uma estatística: morreram cento e não sei quantas pessoas; depois afunilamos a notícia e há cento e não sei quantos nomes; depois afunilamos a notícia e há cento e não sei quantas histórias. Às vezes afunilar é bom, porque nos dá a perspectiva certa do acontecimento: não morreram cento e não sei quantas pessoas; terminaram abruptamente cento e não sei quantas histórias.
JdB
* publicado originalmente a 30 de Março de 2015
Excelente (mas oculta) recordação do acreditar, na fé.
ResponderEliminarClaro que, com o passar do tempo, os escritos têm mais dimensões.
Abraço